“SHAYDA” – A voz da experiência [47 MICSP]
A pulsão que move SHAYDA é seu senso de realidade, não apenas um senso da realidade abstrata, cuja existência todos conhecem, mas uma realidade concreta, pretérita, vivenciada pela sua idealizadora. Corporificar suas experiências em um filme pode ter sido doloroso, mas também libertador, como uma sensação de dever cumprido em relação a um pretérito de gratidão e admiração.
A iraniana Shayda fugiu do seu marido e encontrou refúgio com sua filha, Mona, de seis anos, em um abrigo para mulheres na Austrália. Com a proximidade do Nowruz, o Ano Novo persa, ela se anima com um recomeço, porém a animação se esvai quando Hossein, seu marido de quem pediu o divórcio, tem uma decisão judicial lhe concedendo direito de visita em relação à filha. O principal medo de Shayda é que Hossein leve Mona de volta para o Irã.
Para um primeiro longa, o trabalho de Noora Niasari é de altíssimo nível e apresenta uma cineasta promissora. Do ponto de vista temático, fica expresso no longa a situação das mulheres, em especial as iranianas, subjugadas a condições desfavoráveis resultantes de um sistema que as coloca nelas, ciclicamente, e também de uma moralidade, em olhar ocidental, machista. É nesse segundo sentido que surge outro tema, como plano de fundo, referente à cultura iraniana.
Quanto à cultura, o Ano Novo persa cria um contexto que motiva parte das ações de Shayda, tanto ao ensinar Mona a seu respeito quanto a orientar sua conduta na direção de um novo começo. Por outro lado, Niasari mostra que a comunidade iraniana, mesmo na Austrália, habita uma espécie de bolha, na qual julgamentos coletivos se espalham. Mesmo longe do Irã, o machismo está presente nos iranianos que vivem na Austrália e Shayda sofre com isso. Como uma espécie de pêndulo, a diretora dosa o drama com cenas leves, ressaltando a relevância da música na cultura de seu país: Shayda dança para alegrar Mona, o grupo do abrigo se reúne para dançar juntos, o retorno para casa após o reencontro pai e filha é ritmado por uma canção lírica sobre “minha linda Teerã”.
Em relação às mulheres, não é à toa que Niasari dedica sua obra à sua mãe e às “corajosas mulheres do Irã”. A sororidade não é unânime, como se percebe na primeira conversa de Shayda com sua mãe, mas cria vínculos fortes da protagonista, sobretudo com Elly (Rina Mousavi), que não sabe os pormenores da fuga da amiga, mas ainda assim a apoia incondicionalmente. Existe um arco narrativo lateral mal abordado sobre outra mulher que está no abrigo (se retirado, não faria diferença; da forma como é abordado, é lacunoso) exemplificando a sororidade, contudo o foco está na situação da protagonista.
Zar Amir Ebrahimi tem desempenho formidável no papel principal, com destaque para a cena em que se emociona quando Joyce (Leah Purcell) narra o seu backstory para ser traduzido. A dor dessa cena é palpável, Shayda suspira, sofre mais uma vez em razão da conduta pregressa de Hossein, seus pés tremem (em plano-detalhe), ela chora em um texto forte e genuinamente emocionante. Em outros momentos também a interpretação da atriz encanta, como a apreensão e o desespero na espera pelo retorno da primeira visita e a tensão quando confronta Hossein em uma via pública. Shayda se torna uma personagem complexa porque não se reduz ao conflito externo com o (ex-)marido, apresentando um conflito interno, fruto do externo, que repousa em um freio que impõe a si mesma.
Shayda acaba apresentando, assim, duas versões (reafirmando a qualidade da atriz): a que se incomoda com o julgamento alheio, chega a imaginar cenas e não quer se permitir viver alegremente, e a oposta, que reconhece e abraça seu direito de ser feliz. Na balada, por exemplo, a segunda surge fascinada, sorridente, mas a primeira não tarda a aparecer. A primeira está sempre usando lilás ou roxo, tons sombrios; a segunda se veste de roupas mais ousadas (o vestido prateado de paetês) e cores diferentes (o vestido vermelho).
Hossein (Osamah Sami, com um leve exagero no lado cruel) é um papel sem grandes surpresas, mas é interessante como o filme demonstra que, diferentemente dele, a protagonista compreende a diferença entre a versão paterna de Hossein e sua versão marital. A primeira subsiste, a segunda, não mais. Nessas oposições surge Farhad (Mojean Aria, transmitindo no olhar a tranquilidade de que Shayda precisa), que substancial e imageticamente é o oposto de Hossein. Para além da aparência (um visual ocidental do próprio ator e do seu figurino), sua interação com Shayda é evidentemente mais respeitosa e saudável.
De todo modo, a força de Shayda não está no homem que está ao seu lado, mas no amor que precisa encontrar direcionado a si mesma e, é claro, dedicado à filha. Trata-se de um amor que Noora Niasari, de certo modo, ensina que todas as mulheres devem ter, porque fala com experiência a esse respeito.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.