“PEARL” – Mia Goth
Pearl é Mia Goth e Mia Goth é Pearl. Ao longo da história do cinema, alguns atores e atrizes encarnaram de tal forma seus personagens que os filmes passaram a girar em torno da construção dessas figuras. Foi assim, por exemplo, com Gloria Swanson em “Crepúsculo dos deuses“, Maria Falconetti em “A paixão de Joana D’Arc” e Robert de Niro em “Taxi driver“. Em tais casos, câmera e espectadores são hipnotizados por intérpretes e suas atuações e não conseguem desviar o olhar. PEARL partilha dessa característica ao atrelar sua experiência sensorial ao trabalho de Mia Goth.
Em 2022, “X – A marca da morte” foi lançado como um slasher no qual um grupo de atores passa a ser atacado no local em que gravavam um filme adulto. No centro das mortes estava Pearl, uma idosa atormentada pela passagem do tempo. Em 2023, a continuação é uma prequel que se passa em 1918, quando Pearl ainda era uma jovem que vivia com o pai doente e a mãe disciplinadora. Ela sonha ser uma dançarina e estrela do cinema, mas as obrigações na fazenda onde mora dificultam seus planos. A partir do momento em que frustrações a atingem, uma série de assassinatos começa a ser praticada.
Nas primeiras sequências, uma pergunta se apresenta como cerne da narrativa: quem é Pearl? A questão da identidade constitui todos os conflitos e os indícios de uma personalidade fragmentada, observados pela inserção de Mia Goth já na abertura. A personagem é vista pela primeira vez a partir de um espelho que divide seu reflexo em mais de uma projeção, dando a entender que haveria mais de uma Pearl naquela mulher. Por um lado, ela logo aparece ensaiando uma dança com as roupas antigas em uma cena lírica que enquadra seus movimentos e é acompanhada por uma trilha sonora expressiva. Portanto, em pouco tempo, nota-se o desejo intenso de se tornar uma artista celebrada e de deixar sua casa. Por outro lado, a chegada da mãe interrompe as fantasias, exigindo que troque de roupa e volte ao trabalho de cuidar do pai com paralisia corporal ou dos afazeres da fazenda em uma cena que perde a poesia da decupagem e se torna mais contida visualmente.
Inicialmente, o público pode supor que Pearl seja uma gata borralheira em busca do sucesso graças à performance de Mia Goth. A atriz expõe um encantamento diante da imaginação de como seria sua vida como estrela perfeita e idolatrada ao assistir a um musical no cinema e conversar com o projecionista David. Simultaneamente, também sofre com as ordens e reprimendas da mãe, já que Ruth exige ajuda para as tarefas domésticas, desestimula as ambições da filha e impõe uma disciplina religiosa através de duros castigos.. No entanto, a protagonista possui contradições que não a deixam ser vista como uma jovem indefesa e ingênua. Nesse sentido, Mia Goth atravessa emoções diversas dentro da mesma cena com transformações repentinas no semblante e na composição corporal. Ela tem uma veia artística, porém reprime desejos íntimos (ter fantasias sexuais com outro homem apesar de ser casada com um soldado que está na Primeira Guerra Mundial) e extravasa atitudes violentas (matar um animal de modo chocante e imaginar o assassinato do pai).
Os espectadores não são os únicos que tentam compreender a real identidade da personagem, pois ela própria se questiona sobre quem é e tenta assimilar o que sente. Em algumas passagens, diálogos e situações retratam o dilema interno pelo qual a jovem passa sem saber exatamente sua verdadeira natureza: na conversa com David na sala de projeção, assiste a um trecho de filme adulto e escuta do projecionista que aquele tipo de obra mostrava como as pessoas seriam de fato, e comenta que tentava se assemelhar aos demais indivíduos porque seria mais confortável para ela; além disso, no contexto da pandemia da gripe espanhola em 1918, as pessoas usavam máscaras como proteção, algo que é visto por David como uma barreira para identificá-las. A narrativa também utiliza a fazenda como símbolo de aprisionamento de Pearl, impedindo-a de alçar novos voos sem precisar cuidar do local e da família para sempre, como fica evidente no momento em que um plano detalhe registra um passarinho preso na gaiola. A ideia de enclausuramento ajuda igualmente a humanizar Ruth, já que a discussão na mesa de refeição indica que ela se sentia presa após o adoecimento do marido.
Da mesma maneira que Pearl se divide entre diferentes formas de ser e de agir, o filme também entra em conflito em torno de diferentes estilos. O diretor Ti West propõe uma unidade estilística que combina linguagens e temporalidades variadas, sendo capaz de criar uma narrativa mais complexa em termos dramáticos e estéticos do que “X – A marca da morte“. A premissa seria buscar as origens da vilã de um slasher, mas o terror não é o único gênero presente, já que associa sequências violentas de gore e uma estética de melodrama clássico ao redor dos sonhos da protagonista. Mais adiante, a estilização visual das cenas passadas fora da fazenda contrastam com a sobriedade imagética dos acontecimentos no interior da residência. E os elementos visuais do cinema hollywoodiano dos anos 1940 e 1950, verificados nas transições de cenas e nos créditos, convivem com uma decupagem mais contemporânea nos assassinatos filmados com planos longos e movimentos fluidos de câmera. Por conta disso, Mia Goth leva sua atuação para diferentes dimensões dramatúrgicas, sendo, por vezes, mais caricata e exagerada, e em outros instantes, contida e naturalista.
Um exemplo significativo do quanto a atriz toma para si a unidade estilística da obra é o monólogo em que Pearl desabafa para sua cunhada na cozinha da fazenda. No desabafo, é possível perceber as mágoas de quem tem os sonhos rapidamente bloqueados por uma vida que coloca obrigações desagradáveis, a dificuldade de lidar com o sofrimento que carrega dentro de si ao se ver fadada a repetir os passos de sua mãe e a percepção de que o casamento também criou uma forma de enclausuramento por conta da dinâmica do casal na fazenda e da ida de Howard para a guerra. Na decupagem desse momento, Ti West é sóbrio ao fazer um plano fixo em Mia Goth para destacar o transbordamento das angústias em pouco tempo e aumentar a expectativa do público para a reação de sua cunhada. O monólogo oferece uma chave de leitura para compreender a revelação da violência de Pearl, diretamente associada à sua incapacidade de enfrentar as dores da frustração. Quando os assassinatos começam, a protagonista está tão fragmentada que não há mais possibilidade de encontrar uma unidade sadia para sua personalidade. As mortes são explicitamente chocantes e a própria imagem também é dividida em um split screen que traduz o estado psicológico da jovem.
Nos minutos finais de “Pearl“, a impressão de que a personagem principal seria uma heroína em uma jornada de autodescoberta e luta por seus sonhos toma uma reviravolta considerável. Ao longo da narrativa, algumas pistas já haviam sido colocadas pelas irrupções de violência de Pearl e pelo desejo crescentemente egoísta de fama. À medida que a trilha de sangue ao seu redor aumenta, tudo que diz respeito a ela é uma deturpação patológica e perigosa. As dores de seu sofrimento são reprimidas ou “resolvidas” da maneira mais brutal possível com a ideia de que precisaria liberar suas aflições para qualquer pessoa próxima, já o objetivo de se tornar uma dançarina assume um caráter obsessivo que a deixa capaz de qualquer atitude. Por consequência, o encontro que ocorre na última cena escancara o ambiente degradado e perverso que Pearl ajudou a construir sob um tom trágico. Nada melhor que o último plano, um expressivo close que mistura acolhimento forçado e agonia incontida, para determinar quem Pearl acabou se tornando.
Um resultado de todos os filmes que já viu.