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“OITO CARTÕES-POSTAIS DA UTOPIA” – Falando através da montagem das falas de outrem [48 MICSP]

Poucos documentários conseguem ser tão engraçados quanto OITO CARTÕES-POSTAIS DA UTOPIA. A narrativa usa de sarcasmo para provocar o espectador a perceber como ocorreu a transição entre dois modos de produção no país estudado. Inteligente e cômica, a obra tem a habilidade notável de transmitir uma mensagem mesmo sem grandes intervenções na sua matéria-prima para além da montagem.

O documentário é composto de imagens de arquivo de campanhas publicitárias exibidas na televisão na década de 1990 na Romênia. A partir das peças selecionadas, o apanhado resulta em um retrato da História recente do país durante a sua democratização pós-socialista.

O diretor Radu Jude – dessa vez acompanhado pelo filósofo Christian Ferencz-Flatz no roteiro e na direção – mantém no longa a estrutura que mais lhe agrada, a saber, uma divisão em capítulos, norteada por uma unidade de perspectiva, tal como em Não espere muito do fim do mundo e Má sorte no sexo ou pornô acidental. Aqui, o que concede unidade, no sentido macro, é o retrato de um capitalismo voraz que sucedeu à Revolução Romena de 1989, por força da qual houve um rompimento violento com o regime marxista-leninista que operava no país.

Além de desafiador, o trabalho de montagem é excelente. A quantidade enorme de peças publicitárias das imagens de arquivo, referentes aos mais diversos produtos (alguns conhecidos, como Pepsi, outros provavelmente limitados às fronteiras romenas, além da propaganda governamental relativa à economia), demonstra a pujança indômita com a qual o capitalismo substituiu o socialismo naquele momento. Já em visão micro, cada um dos oito capítulos (somados a um epílogo) recebe uma harmonia particular. Um deles fala sobre a História da Romênia, outro sobre a (nova, por assim dizer) importância do dinheiro (que “fala”), o seguinte sobre a “revolução tecnológica” e assim por diante. O elo lógico entre as peças publicitárias de cada capítulo é essencialmente temático (como aquele em que a publicidade segue cronologicamente o avanço na idade dos homens, sendo esse avanço o tema), porém eventualmente é também estético (como no capítulo “miragem mágica”, em que efeitos digitais ganham espaço, às vezes em detrimento de atores, para criar uma atmosfera, como o nome diz, mágica).

O clímax ocorre em “A anatomia do consumo”, quando as associações entre as peças ocorrem pelos sentidos expressados nas peças publicitárias, como o tato e a visão, de modo que o slow motion e a ausência de som reforçam que o ímpeto dos fornecedores de produtos é estimular os potenciais consumidores ao máximo. “Oito cartões-postais da utopia” é sobre isso, elaborando um encadeamento de ideias para explicitar o quão obscena a publicidade romena pós-socialismo conseguiu ser.

Nessa ótica, há um certo paradoxo entre a ideia governante do documentário e seus elementos de composição. No primeiro caso, trata-se do escárnio concernente à cultura do consumo, estimulada por práticas publicitárias muitas vezes excêntricas; no segundo, o material-base é real. Em outras palavras, por mais que Jude e Ferencz-Flatz façam troça da publicidade, o fato de ela ser real a torna ainda mais surpreendente. De fato, causa espanto o quão caricatas as campanhas conseguiram ser nos anos 1990, com slogans como “Vodka Imperial: pelo imperialismo!” ou gravações repetidas incontáveis vezes de uma mesma singela frase. Há gravações de mau gosto e nonsense, como a que um menino brinca com uma miniatura de tanque nas costas de um adulto (cujo enquadramento pode dar duas sugestões inadequadas para um infante, sobretudo considerando o que ele fala) ou a que um homem tem dois ovos em sua mão após um plano fechado (nessa, a sugestão é bem mais direta).

Se é verdade que o documentário é engraçado graças ao humor possivelmente acidental das peças publicitárias selecionadas (leia-se, quando idealizadas, embora algumas tenham sido pensadas para serem engraçadas), fruto, talvez, do anacronismo, não é menos verdade que elas registram um passado recente bizarro, em que o pêndulo foi de um extremo a outro com a maior força possível. O longa apenas fala o que foi falado antes por outrem. Porém, sem sua montagem primorosa, ele não teria a capacidade de falar tudo o que fala sobre a “utopia” (a do título) capitalista.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).