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“O ESTRANHO” – Do universal ao genérico

Há quem diga que as paisagens são capazes de determinar a história de um país. São reflexos das presenças que um dia ali houveram, inscritas em rostos e identidades. Os que deixam um determinado espaço, munidos de objetivos e expectativas, são comumente abordados pelo cinema. Dessa vez, O ESTRANHO se volta àqueles que ficam, ignorados por narrativas que insistem em priorizar os que tem permissão para sonhar.

Partindo das raízes indígenas do maior aeroporto do Brasil, o filme acompanha um grupo de funcionários do Aeroporto Internacional de Guarulhos. As aeronaves esmagam territórios antes ocupados por povos originários. As turbinas silenciam as vozes e canções típicas. A existência dos proibidos a se deslocar, se esvai, pouco a pouco renegada ao esquecimento. Entrelaçando a rotina dessas personagens, o projeto se volta especialmente para Alê, uma funcionária que busca compreender melhor as suas origens.

(© Embaúba Filmes / Divulgação)

Dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon, o longa se inicia com uma sequência de fragmentação do tempo, explorando séculos distintos que se desenrolaram naquele território. As texturas realçam a formologia de antigas relíquias, vestígios apagados por uma modernidade agressiva. São símbolos selecionados não por um rigor formal, mas como ilustração passageira. A ideia aqui, ou pelo menos uma delas, não está na construção de paralelismos mais diretos, mas sim no discurso, na tese sociológica por detrás do projeto.

Essa apropriação da imagem não é necessariamente um demérito, dialogando inclusive com essa ideia das presenças fugidias. Mas a falta de uma maior resolução entre o lirismo e a objetividade implica na indecisão de uma obra que não sabe o que quer ser. De um lado, essa investigação de relevos e texturas. Do outro, um dispositivo de encontro entre vivências reais e ficcionalizadas. À exceção de algumas poucas sequências, a conexão entre as duas vertentes fica a cargo das sugestões, incapazes de dar conta de todo o resgate sociocultural que o filme ambiciona para si.

Nem por isso, entretanto, deixam de existir aspectos instigantes sobre aquelas personagens. Atraída pelos livros deixados pela mãe, indígena, Alê (Larissa Siqueira) encontra flores planificadas por entre as páginas de estudo. Ela se restringe principalmente às grades das pistas de voo, onde assiste a todos que a abandonam para procurar uma vida melhor.

A personagem surge como uma espécie de âncora da produção. Em seu primeiro plano, ela captura uma câmera que brinca com as possibilidades que percorrem o hangar. As malas sendo carregadas deixam o plano, convidando a lente a encontrar outro passageiro. É quando a protagonista entra em cena, tomando o norte para si. Novamente, entretanto, isso não retira o foco das possibilidades.

A ruína iminente de um relacionamento secreto também atravessa a vida de Alê. O recorte dos demais funcionários sugere a leitura de um perfil social. O segmento final assume o documentário, dispondo de entrevistas com lideranças indígenas e quebrando o núcleo fictício daquelas mesmas personagens. Diversas e diversas possibilidades, que nunca assumem uma dianteira capaz de se afunilar em um assunto específico.

É claro que o pluralismo é fundamental para as construções artísticas, mas é justamente a grande abertura, filiada aos registros universais e menos ao específico, que diminui as capacidades do registro aqui objetivado. O êxodo posto à discussão é também partilhado pelo olhar dos realizadores, incapazes de reproduzir uma visão que não seja a de fora, que a todo momento ameaça não estar mais ali.

Ainda que o filme tenha a sua firmeza na escolha de determinados signos e produza marcantes rimas entre o presente e o passado, é a tentativa de emular um lirismo genérico que naufraga “O estranho”. O sujeito título se manifesta não na ótica de uma reversão de processos históricos ou decoloniais, mas se configura, infelizmente, na lógica daqueles que estruturam a obra.

Na tentativa de retirar essas figuras do seu lugar de deriva, cria-se um registro que tateia essas personagens com a mesma rapidez daqueles que embarcam de Guarulhos. O longa funciona melhor quando elucida os seus principais comentários, e embora as personagens saltem pelo trabalho do elenco, são reduzidas pela falta de coesão com uma poética frágil que não sabe escolher as texturas que gostaria de investigar.