“O ANIMAL CORDIAL” – Cinema de gênero no Brasil
Num restaurante de classe média em São Paulo, funcionários têm atritos com o rígido dono Inácio. Quando ocorre uma tentativa de assalto por Magno e Nuno, Inácio precisa lidar com uma situação extrema na qual a violência impera. À primeira vista, o plot de O ANIMAL CORDIAL, estreia na direção de Gabriela Amaral Almeida, não revela o que é: uma incursão do cinema brasileiro pelo terror de tipo gore com comentários sociais.
O entrecruzamento desses estilos pode parecer estranho. E estranhamento é uma das sensações transmitidas já na sequência dos créditos iniciais (somada a desconforto): imagens anatômicas do corpo humano em meio a sombras e a uma luz vermelha. Conforme se inicia a narrativa, a cineasta Gabriela Amaral introduz um mal-estar aparente graças à dinâmica desconfortável entre patrão e empregados, uma dinâmica que tenta (fracassadamente) suavizar o desgaste do convívio diário. Além disso, durante todo o filme, ela compõe planos e enquadramentos incômodos a partir de muitos closes e planos-detalhe que criam uma claustrofobia psicológica e um mergulho profundo na psique de personagens conturbados. A câmera não preza pela beleza estética, mas sim pela ampliação da atmosfera passivo-agressiva.
Adjetivos como desagradável e incômodo se aplicam à narrativa por conta da abordagem peculiar escolhida para tratar o assalto que movimenta a trama. Após construir a relação entre patrão e empregado (especialmente a partir da garçonete Sara e do cozinheiro Djair) e de todos os funcionários com os clientes da noite (um solitário homem e um rico casal), o crime irrompe para derrubar as aparências até então mantidas e explicitar as tensões sociais. Diferentes tipos de tensões: ricos e pobres; homens e mulheres; preconceitos com a homossexualidade; frustrações da classe média e a desunião entre membros de uma mesma classe. Enquanto no primeiro ato ainda havia um esforço pela preservação de máscaras sociais, os dois atos seguintes representam um grande centro urbano como um barril de pólvora prestes a explodir.
Como metáfora das discussões sociais está o gore, subgênero do terror, no filme. Um estilo marcado por cenas de extrema violência e de imagens repulsivas trabalhado pela diretora como a explosão de angústias e ressentimentos internos, especialmente por parte de Inácio. Através da filmagem do sangue resultante das ações violentas, de um discreto e eficiente trabalho de maquiagem de André Anastácio e de uma mistura desconfortável entre sangue e sexo, o gore se manifesta. Entretanto, não há glamourização ou espetacularização da violência, afinal as duas sequências mais brutais são deixadas no fora de campo ou eclipsadas da narrativa.
A opção pelos planos fechados também exige do elenco atuações em sintonia com a proposta. Algo que faz de Murilo Benício e Luciana Paes os destaques máximos da produção: ele constrói Inácio como um representante da classe média preocupado com as aparências (a forma como trata os clientes e simula uma entrevista à frente do espelho são grandes exemplos) que entra numa espiral de loucura em direção à psicopatia graças à sua impotência diante violência urbana – a expressão fria e calculista em olhos que jamais piscam evoca a imprevisibilidade de seus atos; ela cria a garçonete Sara como uma mulher de classe baixa que rejeita sua origem social e ambiciona uma projeção através de uma interação doentia com o patrão. Os personagens coadjuvantes são símbolos de diferentes arquétipos sociais: o homem solitário do mundo globalizado (Ernani Moraes), um casal prepotente de classe alta (Camila Morgado e Jiddú Pinheiro) e os assaltantes de origem humilde (Humberto Carrão e Ariclenes Barroso). Entre os coadjuvantes, o destaque fica para Irandhir Santos, competente na composição da delicadeza, da postura determinada de seu caráter e do racionalismo em meio à loucura de outros personagens.
Se a sequência de abertura iniciava um mal estar permanente durante toda a narrativa, ela o fazia por introduzir a abordagem sonora criada por Rafael Cavalcanti. A trilha sonora combina distintos instrumentos e estilos musicais decorrentes do uso de sintetizadores, de pianos e de tambores e produz temas muito orgânicos a cada momento da narrativa. Dramaticamente, seu trabalho apresenta dois resultados: causa aflição no público, pontuando sonoramente os conflitos na tela; e evoca emoções contraditórias, atrelando sequências violentas a temas animados e nada opressivos.
O filme ainda consegue transmitir o desconforto e os comentários sociais através do design de produção de Denis Netto. O restaurante, basicamente, possui três cenários ilustrativos da sociedade que busca retratar: o salão onde as aparências e falsidades são estabelecidas com o contato entre clientes e funcionários; a cozinha onde os funcionários pobres ficam apartados, ainda que possam avistar tudo que os cerca; e o corredor em direção ao banheiro onde as verdadeiras personalidades se revelam (sua localização bem no interior do prédio, um espelho quebrado por Inácio e as paredes pintadas de vermelho são detalhes cenográficos que transmitem a violência e as fraturas psicológicas escondidas no interior daqueles indivíduos).
“O animal cordial” desafia o espectador e exige estômagos fortes. Todo um esforço que, caso feito, recompensa com reflexões sobre o Brasil em que vivemos e a heterogeneidade do cinema nacional. Um cinema que pode, à sua escolha e à sua maneira, produzir filmes de gênero.
Um resultado de todos os filmes que já viu.