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“NOSFERATU: O VAMPIRO DA NOITE” (1979) – A maldição da vida

Nosferatu” de F.W. Murnau é um exemplo marcante do Expressionismo alemão, que trabalha o medo do gênero como sensação crucial da trama fantástica e dos seus simbolismos. “Drácula de Bram Stoker” de Francis Ford Coppola é um exemplo do maneirismo do diretor, que ressignifica o personagem sob uma ideia de trágica sedução. “Nosferatu” de Robert Eggers desperta curiosidade pela abordagem a ser escolhida por alguém que chamou a atenção por “A bruxa” e “O farol“. Nesse panorama, não se pode esquecer NOSFERATU: O VAMPIRO DA NOITE de Werner Herzog.

(© Gaumont / Divulgação)

O remake de 1979 se assemelha à primeira versão em termos factuais. Jonathan Harker é um agente imobiliário que vai a Transilvânia para fazer um negócio. Ele ignora os avisos de mal presságio de sua esposa Lucy e os alertas de habitantes do local para não seguir viagem. Ao chegar ao castelo do Conde Drácula, torna-se prisioneiro dele e teme pela vida da esposa devido aos poderes do misterioso homem. Porém, as semelhanças se restringem à trama e não passam para a encenação.

Werner Herzog articula inicialmente recursos que evidenciam o horror do livro de Bram Stoker e do filme de 1922. A ambientação anuncia a proximidade de um mal sobrenatural: o pesadelo de Lucy, os pedidos da mulher em oposição à viagem do marido, o comportamento estranho do chefe durante a atribuição do trabalho e o medo dos ciganos diante da ida do protagonista ao castelo. Além disso, o cineasta se apropria da estética expressionista para filmar diversos momentos do primeiro ato, desde o rosto apavorado de Lucy com o pesadelo até a aproximação de Drácula para um ataque. Em ambos os casos, os contrastes entre luz e sombras, claro e escuro caracterizam essa abordagem. O enquadramento do vampiro segue o referido padrão visual, sobretudo na iluminação de sua silhueta, e constrói uma representação iconográfica expressiva para o cinema de terror em geral e para a ameaça da criatura em particular.

Entretanto, a narrativa não se desenvolve a partir da dinâmica do subgênero ou de expectativas criadas com a obra anterior. A dimensão do horror está presente apenas na exibição do vampiro e não se reflete em sequências assustadoras de mortes. Muitos ataques não são mostrados ou são drenados os efeitos mais esperados de uma cena assim. Em seu lugar, o espectador pode ver uma encenação que se alterna entre o drama existencialista e um formato próximo ao documental. A travessia até o castelo, a própria construção e a cidade de Wismar são apresentadas através de uma atitude contemplativa da câmera, que dá destaque a planos muito abertos da geografia em questão (em especial, o céu gélido que ganha contornos simbólicos no desfecho), momentos silenciosos dos personagens e uma decupagem econômica resolvida em poucos planos. Por isso, cria-se, por vezes, a impressão de se estar diante de um documentário interessado em construir imagens naturalistas para acontecimentos envoltos em uma aura sobrenatural. Uma mudança tão significativa no tom poderia gerar que impacto na conhecida história?

A leitura do diário de Jonathan Harker informa sobre uma maldição Nosferatu que, a princípio, poderia significar a transformação de um homem em um vampiro sedento pelo sangue humano e vulnerável diante da luz solar ou de objetos cristãos. Observando mais profundamente a questão, a narrativa repensa a maldição sob outras bases, ou seja, dá a ela o sentido de ser um peso que atormenta Drácula. Para ele, a imortalidade não traz benesses, privilégios, poder nem qualquer outros suposto benefício em superar a morte por tanto tempo. Ao invés disso, carrega a angústia de presenciar transformações no mundo que não o agradam e o pesar de não conseguir conhecer um amor genuíno que o preencha. A atuação de Klaus Kinski confere ao personagem uma melancolia de uma criatura trágica, que verbaliza constantemente seu ressentimento por continuar existindo. Desse modo, pode-se compreender o porquê de o foco estar no antes e no depois dos ataques, pois são momentos em que Drácula questiona as razões para sua existência naqueles moldes ao mesmo tempo em que não vê outra alternativa.

Diferentemente do que se poderia supor, as semelhanças mais aparentes entre os dois filmes não se sustentam assim e se tornam também diferenças de estilo. Nas duas versões, os eventos se localizam no contexto da grande pandemia da peste bubônica no século XIV. Para F.W. Murnau, era a possibilidade de traçar um paralelo entre o mal representado pelo vampiro e a praga da doença transmitida em larga escala por toda a Europa com uma capacidade mortífera assustadora. Para Werner Herzog, é a chance de transferir a melancolia de Drácula para toda uma época e para os demais indivíduos expostos àquelas condições adversas. Quando as ações passam a se desenrolar na cidade alemã de Wismar, a produção se debruça atentamente sobre o desespero desolador de uma comunidade cercada pela morte e habituada, morbidamente, a ela. É o que se pode verificar em longas sequências que naturalizam o grande número de vítimas da peste bubônica ou de Drácula e até da proliferação de ratos pelas ruas. Dois exemplos são paradigmáticos, como a chegada de uma embarcação “conduzida” por um morto e um banquete feito em meio à infestação dos animais.

O paralelo entre uma ameaça sobrenatural e o perigo de uma doença mortal amplia os significados da maldição mencionada. De maneira similar ao vampiro que se ressente de uma imortalidade sem amor e adaptação às mudanças do mundo, a comunidade alemã em questão pode ser atormentada por uma grave desestabilização. Duas cenas exemplificam muito bem os impactos destrutivos da peste bubônica sobre a organização da sociedade, o cotidiano conhecido e a segurança das relações sociais já familiares. Quando Lucy se dá conta do que pode fazer para frear Drácula busca ajuda de alguém andando por uma rua repleta de pessoas carregando caixões, mas não há qualquer autoridade que possa dar apoio. Mais adiante, a tentativa de prender Van Helsing pelo suposto envolvimento em uma morte no terceiro ato, as instituições de controle social deixaram de existir e não pode cumprir seu papel. As mortes e as fugas desestruturam a sociedade, as instituições e os grupos sociais de tal modo que a vida que ainda se pode ter coexiste com o pessimismo da falta de perspectivas esperançosas.

Nosferatu: o vampiro da noite” encontra o ápice de sua dimensão dramática e autoral na conclusão do terceiro ato. Como também foi feito em outras adaptações, Lucy percebe que deve se sacrificar para dar um fim ao Conde Drácula. O adicional está no fato de que o próprio vampiro aceita igualmente um sacrifício. Diante da mulher, ele tem à sua disposição o sangue da vítima e a possibilidade de concretizar um ato amoroso na sua concepção doentia. Mesmo que sua imortalidade seja colocada em risco, a oportunidade de experimentar um breve lapso de amor pode ser suficiente. Se parasse nesse momento, Werner Herzog já teria feito uma leitura original e interessante para a clássica história. Porém, o diretor vai além e enxerga em Jonathan Harker o recomeço de um ciclo que envolve a fuga desesperada de uma realidade opressiva, a ilusão de uma salvação tão desesperadora quanto o ambiente original de onde se foge e a contestação da fé como crença para a melhoria ou, no mínimo, a explicação do porquê o mundo é como é. A maldição Nosferatu parece, então, contaminar toda a narrativa.