“NAPOLEÃO” – Ele foi grande demais
Napoleão Bonaparte é inquestionavelmente uma das personagens mais relevantes da História. Não é à toa que Stanley Kubrick planejou fazer um filme a seu respeito, conhecido como “o maior filme jamais feito”. A grandiosidade napoleônica está presente na versão dirigida por Ridley Scott, porém NAPOLEÃO se preocupa tanto com seu lado épico que negligencia outros aspectos.
De “ambicioso oficial” a general e de general a imperador, Napoleão Bonaparte foi um importante líder da França pós-Revolução Francesa. Enquanto acompanha suas batalhas e sua ascensão, o filme mostra seu relacionamento com Josefina, a única mulher que amou.
A produção é um híbrido entre biografia, romance, épico e histórico. Do ponto de vista biográfico, o roteiro de David Scarpa (em seu quinto trabalho, sendo “Todo o dinheiro do mundo” o melhor, o que é bastante significativo) não se preocupa com uma abordagem abrangente, não englobando as origens do protagonista (sua mãe, por exemplo, quase não aparece; seu irmão tem cerca de duas cenas de relevância reduzidíssima) ao começar com a Revolução Francesa. Scarpa, por outro lado, é eficaz ao expor a relação de Napoleão com seus três declarados amores. O primeiro é a França, que lhe serve de motivação para todos os atos, norteando sobretudo a sua conduta relativamente aos outros dois. O segundo é o exército: embora o filme não mostre de que modo ele era um líder carismático perante o povo, fica bastante clara a sua dominação perante os soldados.
O terceiro amor de Napoleão é o que o filme melhor trabalha, relativo a Josefina. A trajetória do casal é tão meteórica quanto a ascensão dele, além de igualmente intensa. “Você não é nada sem mim” é uma frase dita mais de uma vez, estabelecendo uma codependência incandescente que seus intérpretes, respectivamente, Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby, incorporam com a entrega necessária. Phoenix varia entre as versões de Napoleão de maneira orgânica: na transição de inseguro (como ao sussurrar para si mesmo na batalha contra os britânicos) para autoconfiante (ao falar que “não vai liderar como segundo em comando”) e arrogante (ao enfrentar a comissão por ter supostamente desertado), e na versão grandiloquente (ao entender Josefina como descartável se não puder fazer o que ele e a França, a seu ver, precisam). O arco narrativo do protagonista é o arquétipo de Cinderela, com Josefina funcionando como um diálogo lateral que relativiza o racionalismo de Napoleão. Kirby encanta na cena da leitura de um texto claramente não escrita por Josefina, mas não há espaço autônomo para a personagem. Além disso, não há coadjuvantes, apesar do potencial manipulador de Talleyrand (Paul Rhys) e dúbio do Czar Alexandre (Edouard Philipponnat).
No romance, fica claro que a codependência Napoleão-Josefina é emocional, não sexual. Quanto à sexualidade, causa surpresa que Ridley Scott apresente sempre algo bruto (leia-se, o sexo entre eles nunca é delicado) e, por vezes, animalesco da parte dele (que faz ruidos com a boca, mexe a perna como um touro, engatinha embaixo da mesa e mesmo o som do sexo em certo momento parece de cavalgada). O diretor retrata uma França bárbara, em que uma briga de casal termina com comida jogada um no outro e conflitos internos são geralmente resolvidos pela violência (Robespierre, o triunvirato resultante de assinaturas sob coação etc.).
A faceta épica do longa é irretocável. Scott apresenta uma superprodução incrível da criação da atmosfera às batalhas impressionantes. O filme é bastante gráfico nos confrontos, com vísceras, partes decepadas e muito sangue; as cenas são longas e convincentes, proporcionais aos números apresentados no texto final. A prevalência de efeitos práticos não poderia ser uma decisão mais acertada. No design de produção, os recintos progridem junto à narrativa para uma ampliação constante, combinando com figurinos cada vez mais luxuosos. Imageticamente, há muita pompa para traduzir a ascensão de Napoleão, a despeito da fotografia escurecida, que simboliza uma época de conflito. No som, a trilha musical é bem coerente com a proposta, principalmente pelo seu crescendo, porém não é nada memorável. Além disso, a escolha de “Ça ira”, de Édith Piaf, não é das melhores: para quem reconhece a voz e/ou o estilo, é perceptível o anacronismo.
Nesse sentido, “Napoleão” é pouco reverente à História, fingindo observância a ela com menções a locais, datas, números e nomes sem uma contextualização suficiente. A política é relegada à sutura, havendo lacunas em que se presume que o espectador domina o Zeitgeist e dados históricos. As alianças e inimizades não têm maiores explicações, simplesmente existem. Na prática, a montagem é prejudicada por um ritmo dependente das cenas de romance e das cenas de batalha, sem um desenvolvimento capaz de envolver o espectador. Provavelmente o corte final de Scott – de duração maior que as mais de duas horas e meia do cinema – estabelece premissas capazes de esclarecer circunstâncias relevantes. Da forma como o filme se apresenta, ou se presume que o espectador tenha razoável conhecimento histórico (o que pode ser perigoso diante de algumas imprecisões), ou a política é pretexto para as esplendorosas cenas de guerra. Parece que Napoleão foi grande demais para Ridley Scott.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.