“MÁQUINA DO TEMPO” – Imagens e tempos
Todas as imagens possuem sua própria historicidade, o que não significa que estão restritas a uma temporalidade única. Elas dizem respeito a um presente, guardam reminiscências de um passado não totalmente superado e abrem caminho para um futuro ainda não concretizado. Na filosofia de Gilles Deleuze, a imagem-tempo é uma propriedade conceitual para pensar o cinema moderno sem as amarras das condições espaciais e temporais tradicionais porque representa tempos que ainda não passaram e possibilidades ainda do porvir. Os debates a respeito das interseções entre imagens e tempo fornecem muitos caminhos para experimentar o exercício de estilo de MÁQUINA DO TEMPO.

O ano é 1941 e a Segunda Guerra Mundial está no auge. As irmãs Thomasina e Martha criaram uma máquina, chamada por elas de Lola, que intercepta transmissões radiofônicas e televisivas do futuro. Com a invenção, elas fazem descobertas culturais surpreendentes, adotam um estilo de vida vanguardista e tem contato com informações cruciais para a geopolítica internacional. Ao localizarem dados que podem alterar os rumos do conflito, passam a trabalhar para a inteligência militar da Grã-Bretanha. Porém, o que seria uma tentativa de conter o avanço nazista pode ter desdobramentos desagradavelmente trágicos.
Na trama, torna-se evidente que os eventos a serem acompanhados se enquadram na dinâmica da ficção científica de viagem no tempo. Há uma tecnologia fictícia que promove a passagem entre tempos, uma sensação inicial de um poder que beneficia a humanidade e algumas reviravoltas que exemplificam as mazelas da manipulação da história. O diretor Andrew Legge não se satisfaz apenas em traduzir no texto essa ideia, já que a coloca também na forma narrativa. O filme, factualmente, se passa na década de 1940 e a a encenação transita por estilos de diferentes períodos históricos. É o que se pode notar, por exemplo, da fotografia em preto e branco que remete a produções experimentais dos anos 1960 e, ora evidencia as ações em cena, ora embaralha o que pode ou não ser visto. A inserção de algumas falas e canções que derrubam fronteiras cronológicas rígidas (“Essa é a voz do futuro” e “Você se lembra do amanhã?”) destacam o caráter simbólico das escolhas estilísticas.
Antes da própria percepção quanto às decisões para a iluminação e seus desdobramentos, a narrativa já anunciava que teria a experimentação de estéticas variadas com temporalidades igualmente diversas. No letreiro inicial, o espectador é introduzido a um universo diegético baseado no found footage. O princípio das filmagens encontradas e exibidas aparentemente em sua integralidade após algo ruim ter acontecido a quem fez as gravações marca o cinema contemporâneo. Simultaneamente, o found footage cria um contraste expressivo com uma trama situada nos anos 1940, quando a técnica ainda não era utilizada. A discrepância tecnológica e temporal é muito bem aproveitada por Andrew Legge, pois permite a ele trabalhar uma tecnologia analógica e sem tanta diversidade técnica como apenas o futuro proporcionou. Sendo assim, os recursos ainda não desenvolvidos no período retratado são adaptados às condições culturais e tecnológicas de um passado distante para promover a imersão dos espectadores naquele universo específico de imagens com suas próprias texturas e traços.
Em outros momentos, o entrelaçamento não se dá entre a contemporaneidade e a década de 1940 e depende de recuos cronológicos mais significativos. Quando Thomasina e Martha explicam aos militares o funcionamento de Lola e passam a ajudar nos esforços de guerra, a encenação aproxima o contexto da Segunda Guerra Mundial ao primeiro cinema na virada do século XIX para o XX. Por vezes, a suspensão dos diálogos ou de outros ruídos cria sequências que lembram os boletins de guerra exibidos nas salas de cinema na Europa para atualizar a audiência em relação ao andamento dos confrontos. Nos demais casos, a mesma suspensão de ruídos acompanhada por uma narração em voice over, inserida a posteriori, evoca os primeiros filmes produzidos antes da evolução tecnológica para a sincronização entre imagem e som. O efeito é curioso e passa a impressão de que a narrativa embarca na máquina do tempo para contar sua história a partir somente da construção visual na dinâmica dos personagens.
Mesmo que o exercício estético seja atrativo e possa conquistar a atenção, poderia ser prejudicial para a obra se desprender de uma dramaturgia um pouco mais convencional. Se o roteiro não deixasse tão claro que as ações diziam respeito ao trabalho das irmãs para auxiliar o exército britânico contra o nazismo, seria possível manter e até a aprofundar o experimentalismo sem uma trama definida. Consciente da questão, o cineasta utiliza a seu favor a combinação de temporalidades para extrair dela conflitos dramáticos. O primeiro deles inclui a relação de Thomasina e Martha, as personalidades de ambas para o melhor uso de Lola. Stefanie Martini faz a personagem mais velha transparecer um empenho exaustivo na vitória militar, desprezando outras possibilidades de conhecer o futuro e manipulando vidas em torno de um “bem maior”. Já Emma Appleton torna a mais jovem uma pessoa idealista, preocupada com as pequenas alterações causadas pelas interferências no tempo, como o desaparecimento de artistas no nível de David Bowie, e envolvida amorosamente com um dos militares.
Outro conflito tem relação com o revisionismo histórico provocado pela utilização da máquina do tempo. Não é nenhuma novidade que as tramas de viagens do tempo trabalham com o desejo de superar algum problema em curso ou já ocorrido e seu respectivo fracasso após a a criação de uma linha temporal pior e alternativa. Andrew Legge se apropria dessa construção para imaginar o que poderia acontecer nos rumos da Segunda Guerra Mundial se informações privilegiadas do futuro fossem usadas a serviço do triunfo do exército britânico. A vitória dos Aliados seria antecipada, o que já constituiria uma reescrita da história? Ou a crença inabalável na superação dos nazistas criaria uma armadilha responsável por fazer a Alemanha sair vitoriosa? Em todos os caminhos percorridos, o cineasta confunde os limites entre passado, presente, futuro e imaginação livre. A confusão de cronologias e de percepções do tempo é encenada através de um anacronismo pensado para modificar o contexto de registros de arquivo sobre Churchill e Hitler em função dos acontecimentos da trama.
Por mais que “Máquina do tempo” faça o exercício de estilo se sobressair bastante e ser a base do filme, não se trata de sua única característica. É verdade que, apesar de sua breve duração, a experimentação com o found footage, as viagens no tempo, a descrição do período da Segunda Guerra Mundial e as evocações do primeiro cinema parecem consumir toda a narrativa. Poderia ser um problema se a dramaturgia apontada na abertura fosse esquecida, pois a proposta cinematográfica tenta equilibrar uma trama definida e liberdade estética. No entanto, o experimentalismo que estaria sujeito às armadilhas de um vazio sem propósito é explorado para um clímax que estabelece um dilema entre os conflitos familiares e históricos. Nesse sentido, a estética se torna palpável para as personagens porque abarca as emoções de uma relação entre irmãs em um contexto hostil.
