Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“GLADIADOR” – Disputa por uma ideia

No antigo Império romano, vitórias militares ampliaram o território daquela civilização, imperadores e senadores divergiam sobre a administração política e gladiadores se enfrentavam em um lotado Coliseu. Em GLADIADOR, lançado em 2000, o cenário histórico foi ficcionalizado para mostrar o general que se tornou escravo, o escravo que se tornou gladiador e o gladiador que desafiou um império. Todos eles são Maximus, o protagonista de um filme que representa embates históricos de uma era a partir de sua disputa contra o governante Commodus e pela ideia do que significaria Roma.

(© Columbia Pictures do Brasil / Divulgação)

Os momentos finais do reinado de Marcus Aurelius chegaram e sua decisão é deixar o trono para Maximus, comandante do exército romano. A predileção pelo militar desperta a ira do filho Commodus, que assassina o pai, assume a coroa e ordena a execução de seu adversário. No entanto, Maximus foge e parte em busca de vingança quando descobre que sua família foi assassinada pelo déspota. Durante seu plano, ele adota a identidade de um escravo gladiador do Império.

Em primeiro lugar, pode-se supor que a disputa em questão se dá em torno do poder político. As tradições romanas fazem dos senadores figuras historicamente influentes, devido à importância do sistema republicano. As crises internas levaram à ascensão de indivíduos que concentraram autoridade e se transformaram em imperadores. E as guerras externas contribuíram para o fortalecimento e projeção pública de generais do exército. Quem, então, deveria assumir o comando de Roma? O diretor Ridley Scott encena tais dilemas de modo a evidenciar as intrigas palacianas que tomam conta do Império: os senadores Falco e Graco surgem consultando Maximus sobre seus interesses políticos por um cargo político relevante, Commodus constantemente conspira contra quem está ao seu redor, inclusive familiares, movido por sua grande ambição e Lucilla tem uma postura ambígua entre Maximus e Commodus por conta de suas próprias motivações políticas nunca exatamente claras, mas sempre condicionadas pelo amor ao filho.

Diferentemente de outras produções históricas, como o recente “Napoleão“, Ridley Scott consegue harmonizar de maneira mais eficiente os bastidores pelo poder e as sequências de ação propriamente ditas. Isso acontece porque as intrigas possuem o tempo de tela adequado para fazer com que o público compreenda o que está em jogo, as alianças formadas (temporárias, arriscadas ou consolidadas por valores maiores) e os objetivos de cada peça naquele tabuleiro. Além disso, as batalhas ou as lutas na arena são filmadas dentro de uma ideia muito clara do espetáculo pretendido, ou seja, a imersão nas condições da Roma antiga orientam as sensações a serem experimentadas nesses momentos. Não se trata exatamente de idealizar a violência brutal dos conflitos, mas de expressar seus eventuais sentidos através da encenação. O domínio territorial sobre os germânicos e o belicismo da história romana são retratados em batalhas campais grandiosas tanta pela brutalidade dos soldados quanto pelos vários planos abertos do cenário. E as lutas entre gladiadores mantêm os mesmos efeitos na abordagem da violência e da magnitude do Coliseu para simbolizar a força da Política do Pão e Circo em um contexto de crise social para a população, que, em teoria, seria distraída pela “diversão” na arena.

Ao longo da jornada do protagonista, a percepção de que há uma disputa em andamento pode ter seu significado ampliado. O que se está sendo disputado é a ideia do que seria Roma. Por mais que possa haver certa simplificação em torno do caráter popular da República romana e idealização da figura de Maximus, constata-se que a narrativa se esforça para transitar entre os embates individuais entre alguns antagonistas e os desdobramentos coletivos desses enfrentamentos. A antiga civilização seria voltada para o interesse da população, como o senador Graco afirma? Na verdade, deveria ecoar um senso de grandeza por sua força política e territorial diante dos outros povos, segundo Commodus? Seria ainda uma válvula de satisfação por poder ditatorial do próprio Commodus? Ou precisaria se organizar em torno dos ideais de honra que formam Maximus? As diferentes perspectivas se chocam à medida que os dois personagens principais aparecem como candidatos à sucessão de Marcus Aurelius e se reencontram no Coliseu em virtude das lutas de gladiadores e dos embates sobre os rumos do governo.

Ridley Scott consegue trabalhar as divergências em relação ao significado simbólico de Roma dentro de uma narrativa hollywoodiana clássica, apesar dos maniqueísmos existentes. Na realidade, o cineasta explora o confronto no formato de bem contra o mal em tudo que cerca Maximus e Commodus dentro de convenções de um drama histórico que beira o melodrama. As traições, as intrigas, as reviravoltas e o clímax do duelo entre eles se adequam com eficiência aos conflitos políticos e militares do Império romano. A construção cênica dos dois atores é outro elemento importante para a dramaturgia como um todo. Russell Crowe dá ao general e gladiador uma imponência de quem está acostumado a liderar e enfrentar seus oponentes até a morte, conseguindo também acrescentar a desesperança e a fúria de perder parte fundamental de sua vida com a execução violenta de sua família. Já Joaquim Phoenix encarna o imperador como alguém que, a princípio, poderia despertar insatisfação do público em razão de sempre surgir questionado e decadente em cena, embora busque muito poder e até tente demonstrar que o possui. Porém, não seria intencional mostrar desde o início a impotência de um homem que não aceita estar abaixo do cargo e da importância que almeja.

Os confrontos políticos ou simbólicos pela ideia do que significaria Roma podem vir dos arcos que giram em torno de Maximus e Commodus, mas não se limitam a eles. Os enfrentamentos não precisam ser apenas físicos, pois também incluem as próprias imagens que os dois podem ter em relação ao futuro da civilização romana junto à plebe. Então, a coletividade não é ignorada e reage aos fatos no Coliseu quando grita frases de protestos contra o imperador e de elogio ao gladiador ou demonstra com aplausos suas emoções de júbilo diante das lutas. Esses são bons termômetros de como a população se coloca favorável ao antigo general e desagrada o governante em seu anseio por ser amado e obedecido. Ao redor dos dois personagens principais, as presenças de Marcus Aurelius e de Lucilla, interpretados por Richard Harris e Connie Nielsen, trazem um peso dramático digno dos dramas shakespearianos por conta da tragédia e da ambiguidade que recobrem as duas trajetórias.

Na filmografia de Ridley Scott, há altos e baixos de quem já criou obras aclamadas, como “Alien: O oitavo passageiro” e “Blade Runner”, e bastante criticadas, como “Conselheiros do crime” e “Alien: Covenant“. Há também interesse por tramas situadas em um pano de fundo histórico, como “Robin Hood“, “Cruzada“, entre outras. Muitas críticas podem vir da irregularidade de seus trabalhos e das liberdades históricas tomadas seguidamente, inclusive em “Gladiador“. De fato, a história de Maximus flexibiliza a reconstituição da Roma antiga, deixando de ser rigorosa quando descreve a relação entre os senadores e o imperador, o sentido político da República e o desfecho do embate entre Commodus e Maximus. No entanto, nenhum filme precisa assegurar um compromisso histórico exato no sentido de recontar o passado exatamente como ele foi de acordo com pesquisas historiográficas. No filme em questão, as liberdades fazem com que muitas sequências sejam encenadas a partir de momentos chave com monólogos impactantes e descargas emocionais. Sendo assim, é um drama histórico que disputa ideias sobre a civilização antiga e as possibilidades de representação histórica.