“ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO” – Alegorias sobre morrer aos poucos
O cinema não precisa ser uma cópia do mundo real para discutir questões existenciais profundas. Para isso, pode utilizar representações com diferentes níveis de verossimilhança. Os filmes alegóricos, dessa forma, resistem diante das ideias resumidas, dos roteiros preguiçosos e do consumo rápido. Temas complexos merecem discussões profundas e que respeitem as incertezas. ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO não deve agradar a todos os públicos com o que propõe: um ensaio sobre morrer aos poucos, sem escolher explicações fáceis, fugindo à ignorância dos pensamentos dicotômicos.
Embora questione a continuidade do relacionamento, uma jovem viaja com seu namorado, Jake, para conhecer os pais dele. Em meio a uma tempestade de neve, o casal chega à fazenda da família. A jovem, então, começa a se questionar sobre seu namorado, sobre ela mesma e sobre o mundo. A partir disso, o filme explora temas como arrependimento, saudade, fragilidade humana e morte.
Produzido pela Netflix, o longa traz uma combinação de técnicas de alto nível, com muitas características já exploradas ao longo da história do cinema, mas com diferenciais marcantes. Em muitos momentos, parece que o diretor e roteirista Charlie Kaufman revisita clássicos de diversos gêneros. Assim, a obra é composta como um conjunto abstrato de memórias, em que cores, texturas e formas fogem ao racionalismo, mostrando que, nas lembranças, os detalhes podem se perder e dar espaço às projeções e aos desejos.
Exigir objetividade de um filme com essa proposta é como desejar que o fogo não queime. Mas é claro que a complexidade não se limita à arte pela arte, tampouco utiliza o exagero ou a multiplicidade de linhas narrativas para atrair o público. “Estou pensando em acabar com tudo” utiliza poucos cenários, poucos personagens, poucas músicas e muita sonoridade, muitas falas, muitas representações. A combinação e, muitas vezes, a justaposição desses elementos dificulta a interpretação de quem busca uma resposta única e inquestionável. Aliás, as dúvidas compõem o que há de mais sólido no filme: tudo pode ser questionado.
O tema central também pode ser alvo de questionamentos. Ele não é expresso com clareza, mas se encontram a nostalgia em relação à infância, os vínculos familiares, a vida conjugal e outros temas similares. Tudo parece convergir a uma experiência multifacetada: a perda. Perde-se a inocência, a infância, o amor, os sonhos, os sentidos e… a vida. Assim, em sua confluência de memórias, o filme traça apenas uma sutil diferença entre a morte do corpo e a morte gradual da existência.
Há várias frases marcantes no roteiro, mas uma reflexão da personagem logo após a chegada à fazenda merece atenção. O tema da morte ganhou destaque neste trecho, em que Jake fala para a namorada que “a vida pode ser dura na fazenda” e, em voice over, a personagem responde: “tudo tem que morrer. Isso é verdade”.
Ela continua a reflexão afirmando que os humanos são os únicos animais que conhecem a inevitabilidade da própria morte e, também, os únicos que não conseguem viver no presente – “então, inventaram a esperança”. Essas falas estão longe de entregar uma resposta, mas ajudam a escolher alguns caminhos para interpretar as simbologias da obra.
A profundidade de “Estou pensando em acabar com tudo” é atingida pela alta qualidade da mise en scène. Se não fossem as excelentes interpretações, o filme teria outro rumo. Jessie Buckley, como a mulher jovem, e Jesse Plemons, como Jake, conduzem o filme com a perfeita de composição de seus personagens.
A capacidade criar personalidades profundas e dinâmicas é sempre importante para o trabalho de atores e atrizes. Aqui, essa característica é indispensável. O tom taciturno é conquistado, exatamente, com as variações sutis dos trejeitos, do tom de voz, do sotaque e dos comportamentos. Em tempos de consumo efêmero, o elenco nos apresentou um trabalho que deve ser lembrado.
O impacto provocado pelo longa surge, também, do uso de inúmeros planos e movimentos, sempre com intencionalidade, conduzindo os olhos do público pelo universo criado em tela. As paletas de cores utilizam tons leves, com pouca vitalidade. Ganham destaque apenas o marrom e o azul, que se repetem pelos cenários, pelos figurinos e pelas pinturas feitas pela jovem.
A iluminação e a colorimetria são tão detalhistas que, em alguns momentos, vemos apenas tons de cinza ao redor dos personagens, enquanto, em outras cenas, as cores se destacam em contraste com a narrativa. Além disso, vemos planos em contraluz, silhuetas e close-ups quase monocromáticos. Na trilha sonora, o pouco uso de músicas dá espaço para os sons ambientes que, a exemplo do limpador de para-brisas, hipnotizam quem escuta com atenção.
A produção acaba, no entanto, direcionando-se a algum lugar misterioso nas profundezas de sua própria rede de sentidos. Por isso, o terceiro ato tem maior duração do que o necessário. Não há um padrão narrativo que se repita, pois o diretor traz novas propostas a cada cena. Porém, ele cria uma longa expectativa no público antes de apresentar sua última nota, antes de arriscar uma conclusão. Embora o ritmo da narrativa seja condizente com o estilo proposto, a concisão do roteiro favoreceria os questionamentos que filme propõe.
“Estou pensando em acabar com tudo” nos deixa muitas dúvidas. O diretor, no entanto, afirmou que não tem expectativas em relação às interpretações do público. Afinal, existem diferentes possibilidades de compreensão dos significados atribuídos a cada metáfora do longa. Diante disso, o que fica de mais marcante é a sensação de que toda memória é um misto do que foi, do que poderia ter sido e de tudo que se perdeu.
Redator especialista em comportamento que busca no Cinema os diversos sentidos da vida.