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“DIÁRIO PARA MEUS FILHOS” – Olhares femininos para as histórias

Filme assistido na plataforma da FILMICCA.

No início da década de 1930, a Hungria foi aliada da Alemanha nazista e perseguia comunistas. No fim da Segunda Guerra Mundial, a Hungria foi integrada à URSS e aos ditames do stalinismo. Na mesma época, os pais da diretora Márta Mészáros morreram por culpa dos expurgos stalinistas e do choque pela perda do companheiro. Inspirando-se na própria história pessoal e de seu país de origem, a cineasta parte de seu mundo individual para pensar as contradições do contexto histórico em DIÁRIO PARA MEUS FILHOS.

(© Filmicca / Divulgação)

A perda precoce dos pais é o elemento pessoal que imediatamente conecta Márta Mészáros e a personagem Juli, uma jovem que retorna da URSS para Budapeste após a orfandade. Ela foi adotada por Magda, importante quadro do Partido Comunista húngaro, mas não gosta de seu novo lar nem da mãe adotiva. Enquanto é criada com grande rigor, Juli insiste para viver em outro local e obter informações sobre familiares de seus pais.

Recorrentemente, a diretora trabalha questões políticas sob a perspectiva de personagens femininas em sua filmografia. A maternidade, a violência doméstica, a emancipação sexual e a desigualdade de direitos são temas constantes. Estudantes, donas de casa, operárias e artistas são as mulheres protagonistas que partilham de experiências similares com a cineasta. Tudo isso é feito dentro da ambientação histórica da Hungria socialista, atravessada pelo forte controle da URSS de Stalin, pela repressão às dissidências ao modelo hegemônico do socialismo e pelo patriarcalismo das relações sociais. Nesse filme em questão, Juli é uma estudante que contesta a rígida criação de Magda, a falta de sentido daquele tipo de educação escolar e a interdição ao seu direito de opinar sobre os destinos da própria vida. Os questionamentos assumem uma forma específica em se tratando de um país que reivindicava um sistema social igualitário e popular.

O arco dramático da jovem compreende, então, diferentes relações com os demais personagens. Em casa, a rebeldia surge na maneira como a atriz Czinkóczi Zsuzsa utiliza a ironia para mostrar o descontentamento com as ordens de Magda e insistir em fazer apenas o que quer. Juli tem um convívio melhor com o avô, vivido por Pál Zolnay, com quem nutre um afeto sincero apesar de desentendimentos pontuais, e Janos, interpretado por Jan Nowicki, uma espécie de figura paterna alternativa que pode também lhe ajudar a se mudar para outra moradia. Na escola, aproxima-se de um colega e quase começa um namoro, mesmo não sendo um relacionamento amoroso evidente devido à mentalidade da época ou à postura da protagonista. De resto, o estudo não é algo atrativo, o que a faz fugir frequentemente para ir ao cinema.

Em paralelo, a história da Hungria na segunda metade da década de 1940 e no início dos anos 1950 se desenvolve. Transmissões de rádio e discursos públicos nas ruas ou na entrada de uma fábrica contextualizam as condições políticas vigentes, citando o rompimento da antiga Iugoslávia de Josip Tito para formar uma via própria do socialismo e a necessidade de maiores esforços dos trabalhadores para cumprir seu papel a favor da revolução. Em termos visuais, a influência soviética é sempre percebida pela exposição de imagens de Lenin e Stalin na arquitetura de edifícios públicos. Ao invés de ter a história do socialismo como pano de fundo estático, ela se funde à trama principal e ecoa na caracterização de alguns personagens. Juli se assemelha a Tito por desafiar o status quo, Magda se parece com Stalin por se basear no rigor da disciplina e Janos lembra Trotsky por ser visto como um traidor devido às atitudes fora da ortodoxia do partido.

Márta Mészáros distingue muito bem os dois universos que compõem a narrativa através da decupagem das emoções. Por mais que estejam entrelaçados, apresentam alguns traços particulares: o cotidiano corriqueiro é movido pela sisudez da hierarquia partidária e da entrega plenamente racional aos ideias revolucionários, já o ambiente em torno da protagonista é passional, clama por maior liberdade e possui comportamentos impulsivos sem qualquer enquadramento fixo. Portanto, a diretora encena de acordo com a necessidade de cada momento. Nas sequências de discursos políticos, conversas entre membros do partido e até na festa de um colega de Juli, a decupagem é sóbria, rígida e tem poucos movimentos no quadro. Nas cenas em que a adolescente discute e extravasa seu inconformismo, os closes são recorrentes para enfatizar o estado de espírito dos personagens e prolongar sentimentos até impactar os espectadores.

Os closes se tornaram uma marca estilística da diretora, sendo feitos em outras obras para amplificar os impactos do mundo histórico sobre o universo individual dos personagens. No entanto, não é o único recurso usado para dar valor formal à trama. A narrativa explora os ressentimentos passados que ainda devem interferir nas relações entre Magda, Janos e o avô de Juli através de lacunas e silêncios. Então, o roteiro não aprofunda que tipos de mágoas e frustrações podem ter e nem precisa, pois a encenação sugere que todos guardam segredos incompreensíveis para a jovem. Além disso, a presença do cinema na diegese obedece a um paradoxo interessante: é uma válvula de escape da realidade indesejada graças ao poder imaginativo da arte, mas, muitas vezes, é uma peça de propaganda do stalinismo e do Exército Vermelho.

Diário para meus filhos” se fundamenta em um conflito que não consegue ser totalmente resolvido porque vai além de sua protagonista. As contradições do bloco socialista sob a liderança de Stalin, que podem desconsiderar a igualdade de gênero e a autonomia das repúblicas socialistas, não podem ser superadas por ações individuais. Logo, a rebeldia de Juli parece alcançar um de seus objetivos, porém não impede que estruturas sociopolíticas mais amplas controlem os desvios à ordem estabelecida. O filme de 1984 faz parte de uma trilogia com “Diários para meus amores” de 1983 e “Diário para minha mãe e meu pai” de 1990. Pensados em conjunto, criticam parte da história da Hungria a partir de olhares femininos muito pessoais.