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“BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES” – Histórias que adaptamos

Os seres humanos criam e precisam de histórias desde o início dos tempos. O compartilhamento de relatos em volta da fogueira, os registros nas paredes da caverna, os mitos, as tramas contadas por escrito, os enredos encenados em imagens e sons são algumas possibilidades de narração de histórias ao longo das eras. Em cada momento histórico, o que é contado de geração em geração ajuda a formar nossas identidades, constitui uma forma de expressão humana, desencadeia emoções e possibilita entretenimento. Nessa trajetória, os sentidos se transformam, adaptam-se e podem estabelecer clássicos como BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES.

(© Disney / Divulgação)

Baseando-se no conto escrito pelos irmãos Grimm no século XIX, a animação da Disney acompanha a princesa Branca de Neve que desperta os ciúmes de uma rainha má. Esta pergunta constantemente a um espelho mágico de seu palácio quem seria a mulher mais bonita. Quando a resposta é a Branca de Neve, a rainha, consumida pelo ódio, ordena a um caçador para matar a jovem. O plano não é bem-sucedido e a princesa continua viva em uma floresta, morando com sete anões. O novo plano passa a ser, então, fazê-la comer uma maçã envenenada.

Antes de ser escrita pelos irmãos Grimm, relatos orais na Alemanha desde a Idade Média difundiram a referida história. Em suas origens, ela possuía um caráter sombrio ao narrar que a Rainha planejava ingerir órgãos da princesa assassinada, tentou três vezes matá-la e os anões se vingaram violentamente da vilã. No material original, uma descrição ameaçadora se depreende da natureza representada como um alerta para amedrontar as crianças desobedientes. Diferentemente dessa perspectiva, a Disney adapta o conto e ressignifica os eventos em questão para, por exemplo, reconfigurar o significado da natureza como um ambiente de inocência e auxílio mútuo. Por mais que uma sequência passada em uma floresta seja assustadora ao encenar as árvores como monstros e a maçã seja um elemento natural identificado com o plano para matar a princesa, ambos adquirem uma percepção assim pela influência externa da vilã. Em geral, o viés é positivo quando se observa a relação entre a protagonista, os animais e os anões no interior da floresta.

De forma geral, a inocência é a chave para entender como a Disney marca as diferenças entre as versões antigas e nossa contemporaneidade. O traço da animação em 2D desenha os personagens e os objetos de maneira lúdica sem demandar a busca por um realismo, como se verifica atualmente. Ao invés de detalhar cada aspecto da textura e das cores dos objetos e aproximar visualmente os personagens da realidade, a técnica prefere um estilo fantasioso que realça as expressões faciais dos indivíduos e dos animais dando a eles um caráter cartunesco. As escolhas formais para o filme convergem com o tom do universo diegético, que abraça a fantasia sem ter a preocupação de dar uma abordagem realista em termos factuais e estéticos. Os eventos da trama podem imediatamente indicar o caráter fantástico, mas é a encenação que garante o desejo pela imaginação e pelo conto de fadas. Na abertura, a narrativa reconhece a origem literária e parte do movimento das páginas de um livro infantil e, no decorrer do tempo, as escolhas musicais, a construção de momentos icônicos e a combinação entre o humor, o romance e algumas inserções do sombrio reforçam a ambientação lúdica e criativa da ficção.

Por ser um musical, a obra convida desde o princípio o espectador a suspender a descrença, aceitar a fantasia e deixar de lado qualquer cinismo que exigiria explicações lógicas para tudo que acontece. Trata-se de um universo à parte, envolvido pela natureza, que mistura a magia, o encanto pelo novo, a pureza diante do mundo e a criatividade de uma história ficcional levada ao audiovisual. Quando os personagens começam a cantar, o extravasamento de suas emoções precisa ser retratado pelas músicas. São os casos em que os anões trabalham na mina, a Branca de Neve limpa a casa dos homenzinhos e a princesa declara seu amor pelo príncipe. O musical proporciona momentos emblemáticos que entraram para a história da animação e continuam sendo lembrados décadas depois de seu lançamento, como a letra da canção “Eu vou! Eu vou! Pra casa agora eu vou. Pararatimbum, paratimbum”. Em outra passagem, o primeiro encontro entre a protagonista e os animais na floresta revela o triunfo da doçura da jovem, já que a falsa sensação de perigo logo cede lugar para a harmonia e o amor entre eles. Uma transformação semelhante dá o tom da chegada dos anões em sua casa quando a princesa já se encontra ali.

Outro aspecto muito marcante diz respeito aos próprios personagens e à dinâmica entre eles. Tal junção permite a criação de imagens que se eternizaram, inclusive se distanciando do conto original e de outras versões feitas pelo cinema posteriormente. A Rainha e seu desejo ciumento de ser a mais bela produzem uma vilã expressiva para os contos de fadas, tendo o acréscimo do espelho mágico para propiciar a famosa frase no áudio original “Espelho mágico, existe alguém mais bela do que eu?” ou traduzida para o português como “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”. Quando os anões Mestre, Dengoso, Atchim, Soneca, Feliz, Dunga e Zangado entram em cena, as características específicas de cada um, a relação com a Branca de Neve e as sequências musicais e cômicas criam mais alguns momentos influentes para a história do cinema. Como não se lembrar da saída para o trabalho em que cada um deles recebe um beijo na cabeça da princesa, os espirros constantes de Atchim, a mudança de Zangado em relação à jovem, os esforços de Dunga para ganhar mais beijos e a amizade construída entre todos?

Embora o humor e a inocência predominem na narrativa, isso não significa que a atmosfera sombria característica da tradição oral da história e do conto dos irmãos Grimm tenha sido totalmente retirada. A animação pode ter amenizado tais traços, reduzindo a violência que fez parte das versões originais em muitas passagens, porém as manteve em doses específicas durante cenas pontuais. Por vezes, a sensação de medo ou de ameaça mortal aparece através de um jogo de luz e sombras evocativo de filmes de terror, já em outros instantes prevalece a construção visual do plano. A aproximação surpresa do caçador para executar o plano da Rainha é mostrada a partir de uma grande sombra cerca a princesa, a fuga para a floresta envolve escapar de formas esteticamente monstruosas no local e o disfarce da vilã sob a imagem de uma idosa carregando a maçã envenenada é retratado em uma noite de tempestade intensa. Quando o plano é executado e a protagonista morde a fruta, o espectador assiste à cena pelo ponto de vista da Rainha ou pelo enquadramento parcial dos efeitos do veneno sobre a protagonista.

Branca de neve e os sete anões” transita entre diversas sequências icônicas que seguem sendo lembradas ao longo do tempo. Podem ser acontecimentos, sensações, personagens e imagens que remetem ao material prévio da história, indicam as escolhas formais e dramatúrgicas da Disney ou reverberam em adaptações futuras. Além da importância das canções, da construção sombria em torno da Rainha, da comédia, da relação da protagonista com os anões, a animação também permite a leitura de alguns símbolos que oferecem outros níveis de percepção. Por exemplo, haveria algum subtexto religioso para o uso da maçã envenenada (uma alusão talvez ao pecado original)? Esse mesmo subtexto poderia dar sentido ao desfecho do romance entre Branca de Neve e o príncipe? Quaisquer que sejam as leituras feitas, o filme se torna um clássico por um conjunto de qualidades que se adaptam a diferentes tempos e propiciam a realização de novas versões. Tudo isso graças a uma animação que sedimentou um caminho rico e emblemático para o cinema.