“ATLANTIQUE” – Significados duplos
Mati Diop concebeu uma estrutura pouco tradicional para ATLANTIQUE: ao invés de uma divisão em três atos, o filme tem duas metades com estilos distintos para contar sua história. Entre outros aspectos, essa característica chamou a atenção do Festival de Cannes para indicá-lo à Palma de Ouro e da Netflix para colocá-lo no catálogo. Acima de tudo, a duplicidade na dimensão temática e estética proporciona possibilidades ricas para personagens muito reais que ultrapassam uma realidade comum.
A obra acompanha Ada, uma adolescente de dezessete anos apaixonada pelo jovem pedreiro Souleimane, que trabalha na construção de um prédio futurista à beira mar no subúrbio do Senegal. O problema reside no fato de que ela já estava prometida para outro homem pela família. Quando, certa noite, alguns trabalhadores desaparecem no mar, seus espíritos retornam, possuindo os corpos das namoradas para acertar as contas com questões mal resolvidas.
A começar pelo roteiro, a trama se divide em uma esfera social e outra íntima, sem que elas estejam isoladas entre si. Na abertura, as primeiras sequências mostram um grupo de trabalhadores em um canteiro de obras sob o desafio de um trabalho duro sem que estejam devidamente remunerados – algo que possui uma escala universal por tratar dos dilemas entre diferentes classes sociais, mas também ganha contornos próprios das situações econômicas adversas da África. À medida que o tempo se desenrola, aparece também um romance proibido entre Ada e Souleimane, que precisam se encontrar em segredo para não desagradar os familiares da jovem – elemento dramático associado ao tradicionalismo religioso de alguns países em relação à falta de liberdade das mulheres. Dessa forma, as injustiças trabalhistas e os relacionamentos amorosos articulam perspectivas micro e macro.
Um jogo de duplos igualmente acontece na decupagem nas cenas. A apresentação do local de trabalho dos personagens é feita com longos planos gerais que, detidamente, enquadram a rotina dos trabalhadores em sua jornada diária, no contato com o patrão e na interação entre si; o mesmo se percebe na localização geográfica na comunidade onde se passa a ação. Em termos narrativos, essa opção acentua o companheirismo entre aquelas pessoas e traços da cultura local (danças, canções típicas e a valorização dos anciãos) de modo prosaico, mas não desimportante. Em outras ocasiões, a narrativa se aproxima do casal protagonista através da câmera na mão e de planos fechados sobre eles para traduzir a intimidade do momento e criar uma beleza visual expressiva (por exemplo, na cena do caminhão registrando as mudanças de fisionomia do pedreiro).
Já na segunda metade, o elemento sobrenatural é inserido sem abandonar as problemáticas das injustiças sociais e das dificuldades de concretização do romance. Na verdade, a reviravolta inesperada abraçando o fantástico indica muito heterodoxamente como o amor dos personagens principais ainda sobrevive – evitando cuidadosamente o risco da pieguice – e como a correção das desigualdades sociais é um ponto do qual não se pode fugir facilmente. No desenvolvimento do script, a transformação de tom até pode soar abrupta e abrir furos mediante uma avaliação meticulosa, porém ela também se combina à estrutura geral. Isso porque o universo diegético apresenta essa dupla camada intercambiável de realismo e sobrenatural.
O equivalente estético ao que se apresentou no tratamento dramático do tema se materializa no uso de artifícios mais idealizados na segunda metade da narrativa. Na porção inicial, Mati Diop prefere a discrição no enfoque da dinâmica dos personagens, no máximo explorando os sons do fora de campo e posicionando a câmera de modo a enquadrar os componentes passivos da cena. Em seguida, a trilha sonora se faz mais presente com acordes capazes de construir uma ambientação de mistério e estranhamento diante de eventos imprevisíveis, além de a iluminação incorporar tons pronunciados de sépia e laranja compatíveis com o desenrolar fantástico daquelas figuras e com a conclusão idealizada do dia da diegese. Por sinal, a duplicidade encontra seu auge simbólico com os sucessivos enquadramentos das ondas do mar, representativos tanto dos obstáculos palpáveis para o casal quanto da porta de entrada dos espíritos.
“Atlantique” não se molda em torno de uma narrativa convencional que tenha um ritmo dinâmico para o espectador ou uma estrutura encontrada em outro filmes. O projeto pensado pela cineasta se direciona para perspectivas diferentes, não pelo fetiche de se distinguir do que é mais popularmente encontrado e, assim, até adotar uma postura autoindulgente. Trata-se de uma proposta que encontra propósitos claros de envolvimento emocional e estabelecimento de uma história com significados duplos: dramas e romances, realismo e fantástico, disparidades entre empregadores e empregados, amores não concretizados, lutas populares e resistência a imposições sociais.
Um resultado de todos os filmes que já viu.