“AS 4 FILHAS DE OLFA” – Moldes entre arte e vida
Fabular a realidade pode ser uma eficiente maneira de escapar. Pode também contribuir para a sua subversão, permitindo ressignificar certos acontecimentos. Traumas enraizados podem ser direcionados a novos caminhos, autorizando os que o carregam a desenvolver novas relações com os mesmos. Partindo de uma série de preceitos, códigos e morais da sociedade patriarcal da Tunísia, é o que acontece em AS 4 FILHAS DE OLFA, documentário que encena momentos chave da trajetória conturbada de uma família de mulheres.
Perseguida pelo peso do desaparecimento de suas duas filhas mais velhas, a conversadora Olfa participa de uma filmagem com suas descendentes mais novas. Alternando entre um estúdio e alguns espaços reais, elas dramatizam memórias enquanto uma dupla de atrizes dá vida às desaparecidas, alternando entre a realidade e a ficção para processar dolorosas passagens de suas vidas.
Dirigido por Kaouhter Ben Habia, o projeto insere essas personagens em uma espécie de laboratório, onde as personalidades vão sendo reveladas, pouco a pouco, independentes à veracidade de todas as informações sendo ali expostas. A importância não está na lembrança fidedigna de conversas ou acontecimentos, mas sim na maneira como o elenco, em seu híbrido entre atores e não atores, processa as situações propostas. A diretora aponta sua lente para as digressões desse processamento último, mais do que a resolução de pendências ou um amadurecimento emocional em si.
Em seu intermédio entre a brutalidade palpável de certos acontecimentos e a relativização dos olhares humanos, esse intercâmbio de relatos e experimentações permite à reinvenção das figuras verídicas, que inclusive se descobrem umas frente as outras. É especialmente interessante, por exemplo, como Olfa Hamrouni transparece a manutenção de certos arcaísmos em sua maneira de pensar.
Ungido em um contexto pós-moderno, onde os movimentos sócio culturais e as ondas de questionamento encontram uma maior democratização – embora certos países ainda estejam mergulhados em retrocesso -, a introdução do projeto nos leva a pensar em mentalidades reinventadas, totalmente livres de ideais de dominação ou machismos internalizados.
Embora flerte com essa potência da criação – e a relação simbólica com o desaparecimento, que exige a criação de duas personas apagadas pela vida, diz muito sobre isso -, a direção de Kaouhter esculpe grande credibilidade. Seus objetos são complexos e, principalmente, livres para expor suas “falhas” e crescer uns com os outros. Não existe julgamento algum para com aquelas presenças, erguidas por um mesmo passado cultural e parental, mas que se expressa de múltiplas maneiras.
São constantes, por exemplo, os atritos entre Olfa e a atriz que a estuda, Hend Sabri. Na tentativa de compreender as motivações daquela que lhe empresta a própria existência, ela empresta princípios seus enquanto visa aprimorar as relações mãe e filha ali presentes. Isso incorpora à densidade das temáticas postas em debate, e permite à família compreender a sua não definição total por um passado díficil.
Uma sequência particularmente emblemática se dá no enfrentamento do namorado – interpretado por Majd Mastoura – da matriarca, quando as irmãs mais novas, Eya Chikhaoui e Tayssir Chikhaoui, exorcizam sequelas há muito internalizadas. A dissonância entre as duas chama verdadeira atenção: enquanto a primeira revela atos abomináveis da parte do homem, reafirmando a própria coragem pelo fazer terapêutico da gravação, a outra se martiriza pela incapacidade de odiar o homem.
Aqui é adicionada outra complexidade do processo, dedicado não apenas a dissecar características prévias de cada integrante, como também a sua reação ao progresso criativo.
Seja na fantasmagoria da dupla de atrizes representando as irmãs desaparecidas, na liberdade que as personagens encontram – talvez, uma vez que nunca se esclarecem os limites entre a verdade e a ficcionalização – em redimensionar certas memórias, ou na forma como os parentescos evoluem por meio do experimento, “As 4 filhas de Olfa” deixa clara a relação intrínseca entre a experiência e a criação.
Pela câmera respeitosa, hábil na extração de diversos universos do pensar sem que os invada agressivamente, Kaouhter detecta o ímpeto de se externalizar pendências privadas pelo âmbito da criação artística. Nem por isso, todavia, se desvencilha de uma dramaturgia palpável em torno de questões históricas e culturais, e que buscam uma atualização em um mundo supostamente moderno. Encontra assim um exercício de libertação de personalidades múltiplas, que se redescobrem na possibilidade de fabulação.