“MARIA E JOÃO: O CONTO DAS BRUXAS” – Conto revisitado
Quem nunca ouviu falar do conto clássico “João e Maria” e seus elementos básicos, como a bruxa que come crianças e a casa feita de doces? O diretor Osgood Perkins também ouviu e decidiu, ao lado do roteirista Rob Hayes, criar outra versão para a lenda oral sistematizada pelos irmãos Grimm. MARIA E JOÃO: O CONTO DAS BRUXAS nasce dessa intenção, não apenas recuperando o tom sombrio de suas origens, mas também carregando uma autoralidade de grande ousadia na visão colocada a uma história tão conhecida.
A premissa da obra não é tão diferente daquela a que o público está habituado. Em um passado indefinível, os irmãos Maria e João buscam alimento, abrigo e a sobrevivência em um bosque após deixarem sua residência abalada pela pobreza. Quando encontram Holda, uma misteriosa mulher que vive na floresta, a chance de sobreviverem logo se transforma em um novo perigo. A partir daí, essa última versão se diferencia da fábula animada da Disney e da proposta de ação fantasiosa lançada em 2013 ao trazer uma perspectiva dramática específica: o embate entre indivíduo e meio com a magia oferecendo possibilidades de construção da própria trajetória individual.
Nesse choque, o ambiente contém uma atmosfera soturna reveladora da opressão e da hostilidade que carrega. Graças ao design de produção, a floresta apresenta árvores intimidadoras com galhos retorcidos, folhas ressacadas e de um tamanho grandioso, ou seja, características praticamente monstruosas de um mal sobrenatural (os planos-detalhe sobre os traços sombrios da vegetação contribuem para a sensação de perigo constante); e a casa de Holda deixa o estilo convidativo de uma estrutura feita de doces para ter um formato triangular desgastado e nada cativante. Complementando a caracterização das locações está a direção de Osgood Perkins, que utiliza bastante a câmera na mão próxima aos personagens e o enquadramento plongée para imprimir tensão enquanto inferioriza os personagens e engrandece o espaço onde estão. Emoções semelhantes advêm também de uma trilha sonora pontual que traz alguns tons evocativos de correntes cortantes de vento.
Quem habita o universo diegético igualmente está em conflito contínuo com ele, desconfiando sempre do que pode ser oferecido (os irmãos falam que o mundo nunca dá algo sem esperar algo em troca) e assumindo uma postura pessimista (Maria vê todo seu entorno dentro de uma imagem maniqueísta). A fotografia acentua o temor diante do meio, investindo em cenas banhadas pela escuridão e com um pequeno facho de luz concentrado nos personagens ou recobertas por névoas que ocultam o espaço; além disso, a inclusão do vermelho na iluminação de dois momentos específicos sugere a luta interna de Maria em proteger João e decidir seu próprio destino (primeiro usando a cor para preencher a floresta, em seguida para dividir o rosto dela e, assim, demonstrar suas fissuras).
O mérito da ambientação, entretanto, não encontra correspondência no desenvolvimento do roteiro de Rob Hayes. Quando a narrativa constrói o universo a partir do texto e não da assinatura visual, o filme oscila entre muitas questões que podem já estar presentes na fábula ou ser a marca do cineasta: os riscos de um mundo fragilizado pela peste, o desespero de uma mãe que não consegue cuidar dos filhos e os expulsa de casa, o sobrenatural encontrado onde menos se imagina, a referência a migalhas de bolo como símbolo da fome que os ameaça e a nova dinâmica entre os três personagens principais. São muitos aspectos a serem trabalhados que esbarram na dificuldade de dar atenção a todos e nas tentativas de resolver isso através da narração em voice over da protagonista, incapaz de fugir do didatismo expositivo.
Apesar de não escapar das desvantagens de uma trama repleta de ideias que precisam se combinar, a autoralidade do diretor e do roteirista é percebida na ousadia inserida na abordagem narrativa. O título coloca Maria antes de João não sem motivo, já que o protagonismo cabe à jovem, dessa vez mais velha do que o menino e responsável pelos cuidados dos dois. Alterar essa relação torna o roteiro mais denso e estruturado também no confronto do indivíduo contra o ambiente, diferenciando a jornada dos irmãos por caminhos em que precisam encontrar sua particularidade. Desse modo, o ponto de vista central é de Maria enquanto atravessa desafios que incluem o poder da magia, a situação da mulher em um contexto adverso, um subtexto religioso sobre o pecado original, a leitura e apropriação de fábulas para a vida cotidiana e a realização de sacrifícios em proveito próprio.
Percebe-se, então, a complexidade da releitura do conto através da evolução dramática dos personagens. Tal fato faz as performances de Sophia Lillis e Alice Krige apresentarem nuances que inviabilizam maniqueísmos convencionais: a bruxa pode ter uma aparência assustadora e agir violentamente, porém tem um discurso persuasivo que, a princípio, estimula a jovem a enfrentar os abusos do mundo e definir seu caminho; já Maria se mostra alguém inquieta, desafiadora do sistema machista e de quaisquer outros obstáculos aos seus objetivos e uma mãe para o garoto, contudo tem questionamentos durante a jornada que revelam ações imperfeitas e uma individualidade incompleta. Porém, a profundidade desejada pelos diretores não é alcançada em função do ritmo arrastado do segundo ato, povoado por digressões filosóficas que não exploram todo o potencial e dificultam o estabelecimento de um foco para a história.
Basear-se em uma fábula muito conhecida e já retratada no cinema de modos variados para criar uma narrativa com personalidade é, no mínimo, uma iniciativa elogiável. Nesse ponto, “Maria e João: o conto das bruxas” não se esquiva de assumir riscos, usar pontualmente o gore e abraçar uma ousadia pouco esperada para um clássico. Já nos outros aspectos, falta ainda ao filme maior refinamento no roteiro para alinhar a complexidade filosófica desejada e um ritmo mais atrativo. É o pecado de se querer algo muito grande antes de consolidar o básico.
Um resultado de todos os filmes que já viu.