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“AINDA ESTOU AQUI” – A razão que alerta e a emoção avassaladora [48 MICSP]

Não é fácil encontrar o equilíbrio entre o individual e o coletivo como faz AINDA ESTOU AQUI. Não se trata de um filme sobre a ditadura militar brasileira, embora esse seja o cenário cujas idiossincrasias reverberam na vida das personagens. Não se trata de um drama real de uma família (e de uma mulher em particular), embora essa seja a mola propulsora da narrativa e certamente a sua grande fonte de emoção. O que é feito no filme é praticamente uma aliança entre a razão oriunda do senso crítico e a emoção fruto da empatia.

No Rio de Janeiro de 1970, a família Paiva vive tranquila em frente à praia e recebendo constantemente os amigos. Tudo muda com o recrudescimento do regime militar: enquanto Rubens, o pai, é sequestrado pelos agentes, cabe a Eunice, a mãe, manter a unidade familiar e cuidar dos seus cinco filhos.

(© SONY / Divulgação)

A direção de Walter Salles parece milimetricamente pensada, dado que não há nada que não soe previamente calculado. Com certa ortodoxia, os moldes são de uma adaptação de uma história real como inúmeras outras, com texto inicial e final, pontuação das datas e fotos reais, por exemplo. No entanto, Salles elabora momentos verdadeiramente preciosos, podendo-se citar a cena que Eunice se encontra dentro do fusca (a filmagem interna e o tremular da câmera transmitem o medo da personagem), a sequência em que ela passa pelo seu maior terror pessoal (na qual o poder da atmosfera criada, com a pouca iluminação e os assustadores sons intradiegéticos, é suficiente) e a que ela é observada pela filha através de uma fresta. O que poderia ter pouca significância em razão da brevidade ganha proporções gigantescas, é o caso da participação de Fernanda Montenegro, que, apesar dos poucos minutos, talvez constitua os minutos mais impactantes do longa (reforçando o quanto a veterana é grandiosa).

Um elemento fundamental no longa é o ritmo que lhe é concedido. Há um longo primeiro ato sem o qual o filme não funcionaria, pois é ele o responsável por estimular a identificação cinematográfica secundária no espectador. São aqueles instantes que dão ao público o valor afetivo daquela família, demonstrando seu afeto imensurável através de um carisma incomparável. Parte disso se deve também à boa atuação de Selton Mello no papel de Rubens: tendo engordado cerca de vinte quilogramas para o papel (para se parecer com o verdadeiro), Mello constrói Rubens como um pai amoroso (jogando pebolim com Marcelo, por exemplo) e um marido apaixonado (como na fala “sua mãe é a mulher mais linda do mundo”), esbanjando sorrisos nos momentos ternos e transparecendo serenidade mesmo nas situações mais assustadoras. As cenas em que ele se relaciona com os integrantes da família (e mesmo com os amigos), assim, o tornam carismático e fazem com que o anunciado sequestro se torne muito mais traumático.

Outra preocupação da direção é expor o Zeitgeist da maneira mais verossímil possível. A partir disso, é criado um clima coerente com a época, exemplificado pelas filmagens em Super 8, pela trilha musical com Os Mutantes e Erasmo Carlos e o noticiário com a voz de Cid Moreira. A mise en scène se esmera em detalhes como a casa dos Paiva, demonstrando seu estilo intelectual (o escritório repleto de livros nas estantes e quadros nas paredes) e sua condição financeira (ao incluir o quarto da empregada), sendo esse o local onde ocorre o pontapé inicial da trama. A fotografia, antes ditada por recintos majoritariamente abertos e bem iluminados, passa para o seu oposto com o fechamento das cortinas, momento a partir do qual a mesma residência parece se transformar (o mesmo acontece brevemente antes, na cena da blitz).

Também ao filmar Eunice a fotografia se destaca: colocando-a em planos médios ou fechados com figurino azul e/ou esverdeado – cores frias simbolizando a frieza que precisa aparentar para os filhos diante da situação – e fundo da mesma cor, sua pele branca passa por um contraste que faz com que ela pareça ainda mais pálida. Fernanda Torres faz uma interpretação firmemente contida no papel principal, quase uma frieza com lapsos que revelam que, mesmo sendo uma mulher muito forte, ela ainda é humana. Sem exageros, Torres faz um magnífico e tocante trabalho no qual impera a serenidade, seja ela improvisada (como ao atender o telefone sob as orientações do militar à paisana), seja ela calculada (ao falar para os filhos sobre São Paulo). As complicações progressivas e a forma como encontra soluções engrandecem a figura e expõem que um sorriso e um alívio nem sempre são fruto de alegria. Torres desenvolve Eunice como ela é: mais que uma rocha, um diamante, dada a sua rigidez inabalável e a sua preciosidade inestimável.

Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva (filho de Eunice e Rubens), o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega articula o contexto coletivo com as consequências individuais de modo que um reforce o outro, sem ofuscar. Há em princípio uma sobreposição do primeiro sobre o segundo, como quando os militares fecham as cortinas da casa. Entretanto, a admirável resiliência de Eunice exerce na narrativa uma força contrária que ratifica o que é realmente central. Os militares são humanizados para obstar um retrato exagerado, mas eles não constituem o ponto de foco. Racionalmente, o longa escancara consequências da ditadura militar, como um alerta contra o autoritarismo. Para equilibrar, emocionalmente, constitui-se como um drama avassalador.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).