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“NÃO NOS MOVERÃO” – Imprevisibilidade em uma história de vingança [48 MICSP]

Mesclando drama e suspense (além de um pouco de comédia) e repleto de simbolismos, NÃO NOS MOVERÃO consegue fazer rir e gerar comoção com a mesma intensidade. Tomando por base um episódio real, o filme tem a vingança como premissa, mas toma caminhos imprevisíveis para refletir a seu respeito.

Mesmo após tantos anos, Socorro permanece com a esperança de encontrar o soldado que matou o seu irmão em um massacre estudantil. Seu ímpeto por justiçamento, fruto de sentimentos não resolvidos, reverbera em suas relações com o filho, Jorge, e a irmã, Esperanza. Quando recebe a informação de que precisa para localizar o soldado, ela dá início à sua empreitada de vingança.

(© Varios Lobos / Divulgação)

A base fática do longa se refere ao massacre de Tlatelolco, ocorrido em 1968, na Cidade do México, quando o governo usou as forças armadas para reprimir passeatas e protestos estudantis. O roteiro escrito pelo diretor Pierre Saint-Martin junto de Iker Compeán Leroux tem, portanto, um subtexto político, o que leva, todavia, a questionamentos morais: é possível fazer justiça a Coque (o falecido irmão da protagonista)? Se sim, no que ela consiste? Qual a extensão da responsabilidade de cada um pelo que ocorreu? Até determinado momento, Socorro tem convicções firmes favoráveis a um viés de justiçamento, o que explica o quid pro quo para obter os resultados almejados. A trama a leva, porém, a aventar a possibilidade de repensar se o que pretende é realmente justo, sem o equívoco de simplificar o que é naturalmente complexo.

Tudo isso induz a um filme dramático, porém não é apenas isso que ocorre. Além do drama que permeia a narrativa, “Não nos moverão” contém pequenas doses de humor, geralmente baseado em equívocos e/ou constrangimentos, como quando o casal leva o bolo para Socorro ou quando a protagonista é flagrada por Lucía junto a Sidarta. O lado cômico concede leveza ao peso dramático, além de enriquecer a própria personagem principal. Socorro tem um backstory bastante profundo, que surge, majoritariamente, em suas conversas pelo telefone. Engenhosa, ela é capaz de enganar qualquer pessoa para conseguir o que quer. O desempenho de Luisa Huertas no papel é fenomenal, conseguindo levar Socorro do ódio ao êxtase com facilidade impressionante. Sua anti-heroína não esconde sua ética particular, mas ainda assim consegue ser carismática e fomentar a empatia. As interações da personagem também são preciosidades, sobretudo com Sidarta, por quem nutre um afeto quase maternal.

Repleto de simbolismos (alguns deles, deveras enigmáticos), o longa é apegado às sutilezas. Sem olvidar outras possíveis interpretações, servem de exemplo: a cor branca da pomba solitária como símbolo da paz almejada por Socorro, as torradas queimadas por Esperanza enquanto alegoria para um passado já encerrado e para o qual não é mais possível voltar, e, claro, a impactante fotografia guardada pela protagonista (e seu destino) como aposto às torradas. O homem que ela contrata é estereotipado (a altura, o chapéu, os ruídos da jaqueta e das botas…), porém a maneira como ele aparece faz parte do viés de suspense que a obra assume em algumas cenas, o que não elide as sutilezas mencionadas.

Em seu terceiro ato, a trajetória do filme é imprevisível e foge das histórias de vingança, estimulando reflexões diferentes do que fazem os similares e – o que é ainda melhor – permitindo paralelos com a violência dos regimes e governantes autoritários, que atiçam a sede de sangue como a que tem Socorro. Com uma estética apurada e uma atuação principal primorosa, “Não nos moverão” é nada menos que excelente.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).