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“POR QUE A GUERRA?” – Um (alto) ruído na comunicação [48 MICSP]

A ideia inicial de POR QUE A GUERRA?, além de sempre oportuna, é muito atraente: uma troca de cartas entre dois dos maiores intelectuais da História sobre um assunto instigante. Traduzir para a linguagem cinematográfica essas cartas pode não ser fácil, a dificuldade encontrada pelo documentário, todavia, reside em inflar seu conteúdo para não ficar apenas nisso. Como saldo, torna-se um filme de altos e baixos com uma comunicação indevidamente atravessada.

Em 1932, Albert Einstein foi convidado pela Liga das Nações para endereçar uma carta sobre qualquer assunto a qualquer pessoa. Ele escolheu se corresponder com Sigmund Freud sobre como evitar a guerra. Até hoje, essa correspondência continua pertinente na medida em que busca investigar as raízes da guerra para talvez evitar que novos conflitos ocorram.

Do ponto de vista estritamente técnico, trata-se de um filme impecável, o que não surpreende por se tratar de uma obra de Amos Gitai. Do início impactante ao final reflexivo, o documentário soa como um épico, coerente com o seu tema e suas personagens. Nos primeiros minutos, a música instrumental intensa cria uma atmosfera enigmática em uma longa cena seguida de um plano-sequência maravilhoso que soa como um convite para uma jornada.

A trilha musical tem muita personalidade, conseguindo construir um crescendo que eleva as sensações transmitidas pelo longa. Na montagem, há duas cenas em que o uso de fusão coloca o espectador em um cenário inebriante e, de certa forma, confuso, tal qual um conflito armado. O primeiro deles é uma encenação mesclando sem um padrão muito claro uma narração em voice over e imagens e sons ilustrativos intradiegéticos, estabelecendo uma atmosfera fiel à temática abordada e compatível com o enfoque escolhido. A montagem não linear e a emotividade pontual indicariam tratar-se de um documentário poético, porém as performances e a dramatização aproximariam o documentário ao tipo performático, conclusão corroborada pela presença das ideias do próprio realizador.

Um dos maiores destaques, nesse sentido, repousa nas interpretações excelentes de Irène Jacob e Mathieu Amalric (não à toa, os enquadramentos geralmente são fechados, privilegiando as atuações). Na cena em que Jacob pinta seus cabelos, o desespero diante do inconformismo é palpável e reforçado pela cor escolhida, respingando em sua pele e combinando com a própria roupa. No caso de Amalric, sua interpretação de Freud alcança o nível soberbo em um monólogo forte associado à sua obra “O mal-estar da civilização”. Talvez pela juventude, que destoa do Einstein geralmente retratado no audiovisual, Micha Lescot deixa a desejar no papel. De todo modo, o elenco tem a consciência muito clara da proposta de Gitai, que é transmitir dramaticidade em cada brainstorm expressada em voz alta. Assim, é notória a teatralidade (inclusive explícita, no palco e no camarim), que, todavia, ganha um tom onírico em algumas cenas, como a da praia. Graças à mise en scène, trata-se de um filme de fortes emoções.

As ideias são expostas em fluxo livre, ainda que partindo, como mencionado na sinopse, do pontapé inicial dado por Einstein. O pensamento do físico sobre o assunto aparece em menor medida; quem realmente se debruça sobre a pauta é o pai da psicanálise. Freud elucida suas concepções dualistas – o instinto de unir e preservar, de um lado, e o de agredir e destruir, de outro (além de normalidade e anormalidade, vencedores e vencidos etc.) – e o papel da cultura (da civilização, ou seja, da coletividade) de reprimir os instintos individuais, o que gera uma frustração que colide com a paz buscada pela civilização.

Quando o filme expõe as ideias desses dois interlocutores, ele é fascinante, seja pela visceralidade de Amalric, seja pela pujança do texto. Por outro lado, quando elas são de outras personagens – isto é, do próprio roteirista, Gitai -, há uma perda de força, porquanto recaem muitas vezes em obviedades e parecem ter sido inseridas de maneira antinatural. Mais precisamente, parece que não havia texto suficiente envolvendo Einstein e Freud, de modo que Gitai precisou preencher seu documentário com ideias próprias, que, contudo, não guardam coesão com o discurso das duas figuras. Em outras palavras, surge um (alto) ruído em meio aos dois, afetando a qualidade da comunicação e, portanto, do próprio filme.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).