“TULLY” – Um retrato sincero demais da maternidade
Nem todos os filmes têm a preocupação de conscientizar as pessoas sobre algo. A aparente singeleza do enredo de TULLY sugere um filme raso, mas o longa é muito mais que a exaltação das supermães – o que não é pouco.
A protagonista Marlo é uma supermãe: grávida do terceiro filho, é responsável por cuidar da casa e da família, não tendo tempo para si. Percebendo o quão cansada ela está, seu irmão lhe dá um presente: uma babá que cuida das crianças no período da noite. Relutante no início, Marlo aceita o presente e acaba tendo na babá Tully sua nova melhor amiga.
O enredo não é tão unidimensional quanto pode parecer, por duas razões. A primeira é porque o texto reserva várias surpresas ao espectador, sem perder a coerência intradiegética. A segunda razão é que aborda de maneira incisiva a realidade materna. O roteiro não finge que o lado positivo da maternidade não existe, o que faz é apontar os inevitáveis dissabores dessa condição – o longa é, em síntese, um retrato sincero demais da maternidade. Às vezes com alguma crueldade, Marlo parece à beira da loucura no louvável trabalho de cuidar dos dois filhos pequenos e da terceira prestes a nascer. A terceirização da educação (na contratação de babás) e a facilidade que o dinheiro pode trazer são matérias mencionadas en passant no texto, mas não é esse o foco.
O foco reside em Marlo, uma mulher que representa várias outras, com uma carga pesadíssima no lar. Charlize Theron está magnífica no papel da protagonista, mudando sutilmente de uma expressão de serenidade – que é o que os filhos precisam ver – para a de exaustão – que é o que realmente sente por dentro. É sensível o itinerário emocional de Marlo a partir da interpretação da atriz: ela começa arrasada, vai piorando e apenas com Tully encontra o caminho da melhora. Até mesmo para a protagonista abrir um sorriso há uma demora compreensível – fato é, porém, que ela vai ficando aliviada e que isso é perceptível por quem a cerca, já que ela usa o tempo para se divertir com os filhos e mesmo com a própria vaidade (antes, contudo, a maquiagem enfatiza o seu cansaço, dando a ela palidez e olheiras).
O curioso é que Tully e Marlo são muito diferentes – e não apenas na idade (a juventude da primeira aumentou o receio da segunda). Mackenzie Davis interpreta Tully com um vigor contido, mostrando quem realmente é com pequenas pistas, aos poucos. Ela é bastante animada e extremamente exótica, chamando a atenção o visual meio hippie (uma blusa grande, que ela costuma tirar, uma regata que deixa o umbigo aparecendo e calça jeans). O figurino, associado à pouca maquiagem, transparece a personalidade despojada e informal da babá. O corpo esbelto de Tully é apenas um dos elementos que a tornam bem diferente de Marlo – Theron engordou ou usou próteses para mostrar sobrepeso e flacidez, aspectos essenciais na estética da personagem. As duas não poderiam ter personalidades mais distintas: por exemplo, enquanto Tully não encara assunto algum como tabu, Marlo nega (mentindo, portanto) que acompanha um reality show sobre garotos de programa. Não obstante, é a energia (em sentido amplo) de Tully que Marlo precisa encontrar, isto é, embora a protagonista não saiba, a babá tem o que lhe carece, emocional e psicologicamente.
O roteiro tem algumas falhas, como uma personagem extremamente mal inserida na trama (a amiga da juventude de Marlo, que podia ter sido mencionada em um diálogo, sem aparecer, não havendo prejuízo algum) e coadjuvantes unidimensionais (é o caso do marido da protagonista, que se reduz à omissão no lar e a jogos de videogame, bem como do irmão desta, que poderia ter sido problematizado). Por outro lado, o texto é impecável em alguns aspectos – por exemplo, no trato da delicada temática do distúrbio não diagnosticado de Jonah: o filho de Marlo dá maior complexidade à trama e insere ao plot um contexto espinhoso, principalmente do ponto de vista do discurso (não é à toa que Marlo fica irritada quando as pessoas dizem que o filho é um problema para ela ou que ele é “peculiar”).
Jason Reitman é um diretor com crédito desde “Juno”, tendo uma filmografia razoavelmente sólida. Poucos diretores teriam a sensibilidade de mostrar a barriga de grávida da protagonista e depois seu filho antes de mostrar o rosto da própria protagonista – o que é coerente, pois, enquanto mãe, Marlo tem nos filhos a sua prioridade de vida. Excluindo alguns takes dispensáveis debaixo da água (o lirismo destoa do viés que predomina), a mise en scène na produção é exemplar – tanto quanto a sequência elíptica repetindo a rotina de cuidado de um recém-nascido, usando similaridade e repetição como pilares. Do ponto de vista dos enquadramentos, poucos se destacam, salvo na cena em que Marlo e Tully estão em um banheiro: em um plano fechado, o desconforto dos planos abertos instantes antes dá lugar a uma atmosfera paradoxalmente intimista. A trilha musical amena se destaca em alguns momentos, mas não é elemento fundamental na narrativa.
“Tully” tem falhas passíveis de correção sem grande dificuldade. Contudo, diversamente de vários outras produções vazias e desnecessárias, o longa é representativo e procura conscientizar as pessoas sobre alguns assuntos (revelar os assuntos acarretaria o risco de spoilers). Isso é um valor em si mesmo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.