“X: A MARCA DA MORTE” – Slasher pós-moderno
O slasher parece estar por todo o lugar no cinema de terror. Para onde se olha, o subgênero se prolifera com novos filmes de franquias conhecidas, como “Pânico“, “Halloween” e “O massacre da serra elétrica“, combinações com outros estilos, como o terrir “A morte te dá parabéns“, sucessos comerciais nos streamings, como a trilogia “A rua do medo“, e projetos futuros, como a série “The Final Girl Group Support“. Nesse cenário, está X: A MARCA DA MORTE, um horror pós-moderno que tem consciência do que é e do que veio antes dele, expondo esse fato através da incorporação de marcas clássicas do subgênero e da operação de ressignificação de elementos típica da pós-modernidade.
Iniciada fora de uma cronologia linear, a narrativa mostra o xerife local e sua equipe investigando o brutal cenário de crime em uma propriedade rural no Texas em 1979. Com a promessa de violentos eventos, a trama volta algumas horas para apresentar os protagonistas: um grupo formado por atores, diretor, assistente e produtor envolvidos na realização de um filme pornô. Maxine, Bobby-Lynne, Jackson, RJ, Lorraine e Wayne conseguem alugar o alojamento da propriedade do casal de idosos Howard e Pearl sem revelar o propósito de sua presença no local. Quando os donos descobrem do que se trata, os jovens precisarão lutar desesperadamente por suas vidas.
Pós-modernidade é um conceito situado a partir das décadas de 1970 e 1980 para se referir a uma realidade de incertezas ideológicas, individualismo, mistura entre o real e a imaginação, aceleração da difusão de informações, produção cultural em massa, supervalorização das imagens, símbolos e signos, fluidez das relações sociais e políticas e experimentações artísticas com ironia, metalinguagem e sincretismo. No caso do cinema pós-moderno, o maneirismo se tornou sua expressão marcante com a explicitação do caráter subjetivo da imagem em função da construção autoconsciente e escancarada do realizador, interessado em evidenciar seus traços artísticos e suas relações com a história do cinema. Ti West se coloca nesse lugar ao evocar a ambientação do faroeste (o sul dos EUA, o chapéu usado por Wayne e o sotaque sulista do elenco) e, principalmente, “O massacre da serra elétrica“, graças ao ano e à região onde o filme se passa, à semelhança de uma viagem de jovens de van para uma área afastada e ao design de produção decadente da casa do casal de idosos criado por Tom Hammock.
Na apresentação do universo diegético de um slasher, o diretor também tem consciência da importância de preparar a atmosfera antes das mortes. Nesse sentido, algumas sequências constitutivas do subgênero são realizadas para insinuar a aproximação de uma ameaça e a vulnerabilidade dos personagens, sendo o casal Howard e Pearl crucial para essas construções ao sempre sugerir um perigo implícito através da presença ao longe, do moralismo conservador ou de ações incomuns – algo reforçado pelo eficiente trabalho de maquiagem que degrada os corpos de ambos. Além disso, a fotografia de Eliot Rockett trabalha a tensão em planos abertos que podem situar a relação espacial entre a casa principal e o alojamento ou representar a caça quase animalesca a que os jovens estarão submetidos, exemplificados pelo momento em que Maxime nada no lago onde há um jacaré. Inclusive, as aparições de um jacaré e de algumas vacas remetem à produção de Tobe Hooper no que se refere à alegoria do abate de animais para a condição dos personagens.
Entretanto, o cinema pós-moderno não se contenta em recuperar tradições estabelecidas. É preciso também evidenciá-las, ressignificá-las, redimensioná-las ou subvertê-las. É o caso do erotismo decorrente das gravações do filme adulto, que remete à objetificação do corpo feminino e ao conservadorismo punitivo do sexo e das drogas encontrados em muitos slashers. Partindo dessas características iniciais, Ti West ultrapassa construções já esperadas e associa a nudez de tais momentos aos traços narrativos dos personagens e aos comentários metalinguísticos. Todas aquelas figuras podem ser entendidas a partir das filmagens eróticas (quem quer prosperar financeiramente, quem busca diversão imediata, quem procura desafios artísticos, quem se liberta de antigos pudores e quem almeja controle sobre a própria vida). E na cena em que conversam sobre o poder ficcional do que está em frente à câmera, os jovens comentam o fazer cinematográfico citando os apelos sensoriais de filmes pornôs e a possibilidade de mudanças significativas em uma história a partir do exemplo de “Psicose“, enquanto a narrativa satiriza o posicionamento de certos diretores de verem seus trabalhos como “horror elevado”.
A mesma cena ainda traz algumas questões capazes de reorientar a figura do assassino no slasher e o punitivismo puritano contra sexo e drogas. A partir de transições expressivas na montagem criadas pelo próprio diretor em parceria com David Kashevaroff, o tema dos efeitos da passagem do tempo reverbera de forma intensa em um cinema maneirista que se relaciona com o passado da arte e em vilões afetados pela perda da juventude – uma montagem paralela encadeia o grupo de jovens cantando uma canção sobre o tempo enquanto o corpo idoso de Pearl e a decadência de uma residência são mostrados. Em outras passagens, o puritanismo conservador é ironizado com a transmissão de um programa religioso de TV em que o apresentador alerta para os perigos de uma geração de degenerados e depravados que se afastaram da moral cristã. Os trechos do programa aparecem como ecos pontuais, entrelaçados às cenas em que os jovens filmam o filme adulto, consomem drogas ou dizem palavrões recorrendo sarcasticamente a um vocabulário religioso.
Tomando para si a ideia de que um filme pode se transformar na metade final, “X: A marca da morte” abraça de vez a dinâmica do subgênero e os impactos sensoriais que ele proporciona. Mesmo nem sempre buscando as mortes mais elaboradas ou irreais, a narrativa registra cada uma delas sem evitar o gore e a exposição de sangue ou de vísceras resultantes dos ataques dos assassinos. A questão central passa a ser a criação de momentos específicos de assassinatos que podem ser lembrados a partir da construção visual mais estilizada, especialmente o primeiro a acontecer banhado por uma intensa luz vermelha, e da combinação entre violência explícita e erotismo. É bem verdade que a brutalidade que atinge os corpos jovens não acontece dentro de uma perspectiva conservadora que marcou, sobretudo, a primeira geração dos slasher, mas segue a discussão geral a respeito dos efeitos do tempo sobre as imagens, sejam elas cinematográficas, sejam elas identitárias.
“X: A marca da morte” até pode fazer parte da onda contemporânea de filmes slashers, porém se diferencia dos demais ao assumir uma abordagem pós-moderna. Traz elementos clássicos historicamente, como o registro direto da violência explícita, o erotismo e a presença de determinado puritanismo comportamental ao mesmo tempo que os remodela dando sentidos muito específicos. Os assassinos são reconfigurados em outros propósitos narrativos, o corpo feminino é retratado sob outro olhar por uma câmera mais próxima do sentimento complexo de Howard e Pearl diante do tempo, o corpo masculino é trabalhado dentro do componente dramático pretendido sob um viés mais sexualizado e o puritanismo religioso é satirizado pela contextualização do programa de TV e pela subversão da final girl nas últimas sequências. Reconhecida sua historicidade que interliga conscientemente passado e presente, Ti West ainda aponta para o futuro com o trabalho de marketing que confirma a continuação “Pearl“.
Um resultado de todos os filmes que já viu.