“AS PEQUENAS MARGARIDAS” – Na busca de um escapismo rebelde
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página)
Nas décadas de 1950 e 1960, uma nova onda circulou por diversas cinematografias nacionais e questionou as bases de um cinema clássico de narrativa transparente tradicional e lógica espaço-temporal linear. O cinema de autor e o uso da câmera como uma caneta (caméra-stylo) para imprimir o estilo de seu realizador tiveram a Nouvelle Vague francesa como expoente simbólico, mas não exclusivo. Esta nova onda se estendeu também, por exemplo, para o Japão, Nigéria, Mali, Gana e para a antiga Tchecoslováquia. Especificamente neste último país, o contexto da Guerra Fria e da cortina de ferro foi decisivo para o trabalho criativo de cineastas e roteiristas. É o caso de AS PEQUENAS MARGARIDAS, obra paradigmática da Nouvelle Vague tchecoslovaca.
Embora o recorte histórico jamais apareça de forma evidente na narrativa ou na trama, a contestação de um período no qual o socialismo soviético se impunha às demais repúblicas daquele bloco ideológico pode ser sentida através das escolhas formais e da caracterização das personagens principais. O foco está em duas adolescentes de nome Marie, que consideram o mundo à sua volta caótico e depravado. Por isso, elas decidem também ser depravadas dentro de suas próprias ousadias comportamentais e sociais. A partir daí, ambas começam a fazer várias brincadeiras de apelo destrutivo.
Mesmo que o contexto de uma Tchecoslováquia tolhida pela Rússia dentro da URSS não seja explícito, alguns paralelismos imagéticos dão o tom dessa condição no bloco socialista. Nas sequências iniciais, as imagens das engrenagens de uma máquina em funcionamento são seguidas por imagens de explosões ou ataques militares – o filme não responde quais sentidos poderiam ter sido criados, porém permite pensar que podem evocar as batalhas na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria, além da rigidez quase matemática da burocracia do Partido Comunista. Tais subtextos históricos trazem o peso da violência bélica, da ortodoxia disciplinadora do socialismo em termos comportamentais e da racionalização extrema da tecnologia em contraponto com o desejo de libertação das duas Marie. Não por coincidência, as duas mulheres surgem em uma sauna comentando que podem ser depravadas se o mundo ao redor é assim, o que as faz logo em seguida transitar por distintos espaços, realidades e atitudes em uma tentativa de escapar de um universo hostil aos seus desejos.
Os primeiro indícios de que as jovens se rebelam contra um sistema castrador e conservador são suas ações. Elas brincam de tal maneira que a ousadia e a provocação desafiam as convenções sociais do início da década de 1960, assumindo, principalmente, conotações libertárias, femininas e eróticas. Em diversos momentos, as Marie não se preocupam com a reação da sociedade ao vê-las comendo, cortando alimentos e descartando os restos sem tanto cuidado ou sutileza no próprio quarto e em um salão de banquete. Em outros instantes, as duas são filmadas com pouca roupa, não se furtando de exibir seus corpos para a câmera. E há pelo menos três “encontros amorosos” com homens mais velhos em um restaurante, nos quais ambas estão presentes e chocam as percepções dos sujeitos comendo sem parar, abordado assuntos inesperados e abandonando-os nos trilhos do trem. As atitudes das duas adolescentes também contrastam com aquela realidade por conta das atuações cômicas e infantilizadas das atrizes Ivana Karbanova e Jitka Cerhova, como se arriscar gestos e performances as divertisse.
As atitudes mais literais das duas protagonistas são apenas uma dimensão da rebeldia ao conservadorismo social. Em sequências alegóricas, a liberdade sexual e a afronta ao patriarcalismo são tematizadas a partir de símbolos bastante expressivos: quando recebem a ligação de um homem que implora poder rever uma delas, as jovens cortam e comem alimentos que remetem ao órgão sexual masculino (linguiça e ovos) ou possuem uma forma fálica (picles e pepinos), algo que poderia ser visto como a manipulação da figura masculina. Esse mesmo sujeito já havia sido provocado por uma Marie que se colocava para ele como uma musa seminua pronta para ser pintada em um quadro e adorada. Mais à frente, as duas personagens preparam um banho na banheira que inclui leite, ovos e a fotografia de um homem, todos esses elementos também capazes de evocar sexualidade, mas a partir de uma perspectiva de liberdade sexual feminina.
Há ainda outros momentos em que alimentos aparecem em cena e recebem outros sentidos narrativos. Ao longo de boa parte do filme, é possível ouvir ruídos de teclas de uma máquina de escrever, da ligação de um telefone e dos batimentos de um relógio antigo; em contraposição a esses artigos tecnológicos, as protagonistas estão constantemente cercadas por alimentos naturais, como frutas, legumes e verduras, e os ingerem crus. Tal contraponto não se torna gratuito em virtude da sua repetição em diversas sequências, levando o espectador a cogitar e experimentar possibilidades de assimilação desse contraste. Entre as leituras possíveis, as personagens podem tentar escapar de um mundo determinado pela tecnologia e cada vez mais distante de aspectos naturais que não passaram por uma grande intervenção humana. Esta impressão pode se fortalecer nos diálogos em que comentam estar em busca de outro lugar onde se sintam mais à vontade e nas cenas em que cruzam com ciclistas e senhores idosos sem serem vistas por eles, quase como se fossem invisíveis ou não pertencessem aquele universo.
Věra Chytilová é uma diretora tão habilidosa na construção de sua narrativa que a forma acompanha o conteúdo de maneiras muito inventivas. A composição visual dos planos e o encadeamento das sequências na montagem abraçam a ideia da contestação às normas estabelecidas, sendo no caso um desafio às concepções artísticas do realismo socialista. Na construção dos planos, a diretora utiliza colorações muito distintas entre si, alternando entre imagens com cores vivas e naturais, em preto e branco e em filtros de luz sépia, azulado, arroxeado ou escurecido; além de também brincar com os estilos dramáticos e estéticos das cenas, passeando pelo cinema mudo, pela pop art, pelo cinema surrealista e por uma arte decorativa. Já nas transições, os jump cuts libertam a narrativa da necessidade de seguir uma coerência lógico-espacial, pois fazem a trama saltar de ambientes muito diferentes com grande velocidade, como uma sauna, o quarto das personagens, o banheiro do restaurante, o próprio restaurante, um campo florido e flashes de uma rua melancólica e cinzenta.
A postura das Marie e a construção estética da obra sugerem que existe um mundo opressor e rígido no qual diretora e personagens não querem fazer parte. Os flashes de engrenagens em movimento, de explosões e de uma rua vazia se contrapõem aos espaços livres e em constante transformação pelos quais as jovens transitam e gostariam de permanecer eternamente. Porém, a sequência final passada em um salão, onde um banquete é servido, quebra os desejos das protagonistas. Inicialmente, ela pode servir como crítica aos excessos do capitalismo, especialmente porque as adolescentes comem e pisoteiam as comidas sem a menor cerimônia. Com o passar do tempo e após alguns jump cuts, elas aparecem jogadas em um rio sem receber ajuda para sair dali e, inesperadamente, retornam ao salão. Nessa volta, o entusiasmo desapareceu, a melancolia se abateu sobre elas e as tentativas de parecerem felizes são frustrantes. A iluminação se tornou opressiva, as roupas ganharam um aspecto cadavérico ou de prisioneiros e as normas sociais repressoras parecem se impor novamente. Isso porque a tão desejada liberdade encontra mais uma vez o poder destruidor de um sistema normativo rígido e conservador, que pode restringir a arte e os comportamentos sociais. Nesse ponto, a crítica de Věra Chytilová atinge um clímax em que novamente imagens de guerra fazem todo o sentido.
Um resultado de todos os filmes que já viu.