“ZANA” – Opressão militar, social e mística
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
O fantástico e o místico são muitas vezes utilizados como alegorias para os medos em filmes de terror ou para as dores emocionais em filmes de drama. Podem atuar como metáforas para ameaças bastante reais (como em “O que ficou para trás”) ou como válvula de escape de uma realidade opressora (como em “O labirinto do fauno“). Estes usos estão longe de esgotar as possibilidades de articulação entre o real e o fantasioso, algo que ZANA reconhece e explora. A coprodução sérvia e albanesa se apropria do fantástico para intensificar a devastação psicológica que uma conjuntura hostil pode gerar em figuras que se veem completamente desesperançosas.
A realidade em questão é o Kosovo após os conflitos étnicos e territoriais envolvendo esse país, a Sérvia e a Albânia no fim dos anos 1990. Em uma área rural, Lume é assombrada por um passado doloroso enquanto é pressionada pela família para engravidar. A dificuldade de se tornar mãe é vista por seus familiares como um problema que precisa ser tratado a qualquer custo, inclusive com o envolvimento de curandeiros. Então, a mulher sofre com as pressões da maternidade e com os traumas da guerra.
De início, a narrativa assume uma veia dramática central que se apoia na condição feminina naquela sociedade. O tradicionalismo religioso se reflete nas obrigações que Lume deve cumprir na casa onde vive com seu marido Ilir e sua sogra Remzije, praticamente sem ter ajuda. O cotidiano de cuidar dos animais do local, preparar as refeições e limpar a habitação é filmado em longos planos que traduzem esteticamente a monotonia de sua vida; já o excesso de trabalho em suas costas fica evidente na montagem que encadeia um conjunto de cenas no qual se pode ver o marido dormindo, sendo servido ou bebendo. Porém, isso tudo ainda seria insuficiente para Lume, que ainda precisaria da maternidade para completar seu papel social. Por isso, o primeiro conflito retratado para a personagem está na dimensão social das opressões de gênero que retiram das mulheres a liberdade de escolher como levar suas vidas.
Por mais que o machismo da sociedade já seja elemento suficiente para sufocar a protagonista, a postura de Lume sugere algo mais que a aflige. Em muitos momentos, ela aparece anestesiada como se estivesse em uma voltagem muito lenta e sem conseguir resistir às mazelas do entorno – embora tenha confrontado o marido quando insinuam que ele poderia buscar outra esposa e quando discutem sobre o futuro deles. Em geral, Lume não demonstra ter tanta força para lidar com as sucessivas consultas ao médico e a insistência da sogra para visitarem uma curandeira, logo cede às decisões de outras pessoas. Além dos acontecimentos em si, a atuação de Adriana Matoshi é essencial para a percepção de que Lume reprime sofrimentos mal resolvidos (ou sequer elaborados), já que os silêncios, a expressão cabisbaixa e o olhar angustiado são traços permanentes e complexos. E a atriz não deixa a impressão de que só haveria uma causa para isso.
Se os espectadores sentem que Lume possui problemas muito maiores do que a dificuldade de engravidar, as demais personagens não sentem o mesmo. A maioria busca explicações místicas com dois curandeiros, uma mulher simples que vive na região e um homem famoso que aparece na televisão e atende diversas pessoas. Ambos apontam “tratamentos” baseados em crenças sobrenaturais, que se relacionam com sacrifício de animais e expulsão de jinns (entidade sobrenatural que rege o destino de alguém ou de algum lugar para a mitologia islâmica). Em comum, os dois processos de “cura” servem para oprimir ainda mais a mulher, considerada culpada pela não gravidez e pelos abortos: não estaria receptiva para um bebê ou não estava sendo ela mesma por influência dos jinns. Assim, a protagonista é novamente advertida que a solução das agruras seria aceitar o papel de mãe dona de casa imposto a ela.
Enquanto Lume é forçada em muitas direções a aceitar imposições de fora, suas dores emocionais se revelam cada vez mais. A sensação inicial de que a mulher carregaria traumas passados se confirma quando a narrativa entrelaça a história de vida da personagem e a tragédia histórica da guerra do Kosovo, construindo aos poucos a percepção de que ela poderia estar depressiva ou com outra condição patológica decorrente das experiências dolorosas pelas quais passou. Esse novo elemento é inserido por Antoneta Kastrati a partir do diálogo que faz entre o drama, o suspense e o terror, sendo estes dois últimos também trabalhados em uma dimensão sobrenatural. Regularmente, Lume passa por momentos aflitivos ou assustadores envolvendo ferimentos no rosto ou na cabeça: o sacrifício de um animal cortando a cabeça, as alucinações/visões de mais um animal ferido sem cabeça e os pesadelos, relacionados a uma perda familiar, com uma pessoa ferida em uma manta.
Conforme o filme avança, o terror e o drama estão tão imbricados que o desespero de Lume cresce em face da falta de perspectivas de futuro. Por um lado, o marido insiste em ouvir e seguir o curandeiro mesmo que isso signifique tolerar a violência contra a esposa; por outro, as possibilidades de fuga daquele universo são excluídas pelo tradicionalismo religioso que não permite à mulher voltar para sua família e interromper um casamento infeliz. A desesperança e o pessimismo impregnam os dois últimos atos, tanto através do roteiro que amplia a intensidade dos conflitos, quanto através da dinâmica das personagens que se mostram insensíveis de reconhecer que a guerra traumatizou Lume. E desse choque entre a realidade de um país e a vivência de uma mulher, a diretora concilia uma narrativa minimalista calcada nos silêncios com explosões de uma dor reprimida.
Lume não consegue escapar de de uma rede de acontecimentos e emoções que fazem a realidade cotidiana e o místico se cruzarem para violentá-la e retirar esperanças de sua vida. O pessimismo suga as energias de uma protagonista que é oprimida pelo patriarcalismo da sociedade, pelos legados destrutivos da guerra e pelos sofrimentos de uma tragédia pessoal. Consequentemente, a entrada do terceiro ato pode até sugerir uma saída para sua depressão, mas a sensação é passageira e a preparação para um desfecho acumula infortúnios crescentes até uma última cena devastadora. E quando os créditos finais sobem, a melancolia cresce ao mostrar que “Zana” é fruto das experiências autobiográficas da diretora Antone Kastrati, que não busca a arte como válvula de escape ou como símbolo de algo real, mas como uma construção capaz de perturbar e angustiar assim como o mundo retratado.
Um resultado de todos os filmes que já viu.