“WELCOME TO CHECHNYA” – Causa humanitária [44 MICSP]
“Besteira, não existe isso aqui. Se houver, podem levar. Queremos purificar o nosso sangue e eles responderão ao Todo-poderoso por tais acusações infundadas”. Esse discurso poderia ter sido proferido durante a Segunda Guerra por Adolf Hitler ao negar o Holocausto (negacionismo que, aliás, lamentavelmente ainda hoje encontra adeptos). Mas essa fala não foi proferida por Hitler, não se refere ao Holocausto e as vítimas não são os judeus. Este é o contexto de WELCOME TO CHECHNYA.
O documentário expõe o trabalho de um grupo de ativistas que, correndo risco de vida, lutam por direitos da população LGBTQIA+ na Chechênia, onde o governo estimula e até promove perseguições que não raras vezes resultam em morte. As pessoas precisam de socorro, mas não podem gritar. Clandestinamente, formou-se uma rede de apoio que auxilia na fuga do país.
Afirmar que a bandeira de David France é a causa LGBTQIA+ seria de um reducionismo imenso. Através de alguns vídeos interceptados por ativistas, pode-se perceber que a causa é humanitária, ou seja, de uma gravidade muito maior. O que o cineasta exibe é vil de uma maneira raramente vista, sobretudo considerando que não são apenas fatos, mas imagens reais – que vão de espancamento a tortura, por exemplo (e sim, são apenas exemplos). São cenas extremamente fortes e que podem funcionar como gatilho para uma plateia sensível (então, fica o alerta).
O modo de atuação dos agentes que perseguem as vítimas é absurdamente abominável, de uma hediondez imensurável. O método se iniciou acidentalmente em 2017 e, desde então, vem sendo amparado pelo forte aparato estatal de Ramzan Kadyrov, presidente da Chechênia. Apoiado por Vladimir Putin (presidente da Rússia), a república chechena (que faz parte da federação russa) consegue dizimar pessoas enquanto o Kremlin, formalmente, nega a perseguição. Mesmo quando pessoas bravas se expõem e relatam os atos perversos aos quais foram submetidos, a perseguição é negada. Se assim fosse, não seria necessário modificar digitalmente a voz e o rosto dos jovens no filme.
Essa modificação é decorrência inafastável do medo (que impressiona quando um rapaz se preocupa com a jaqueta que está usando para gravar um vídeo, mesmo sabendo das modificações digitais). É um medo que toma conta dessas pessoas, mais ainda quando torturados, física ou psicologicamente – afirmações como “não são chechenos” e “deveriam morrer (em razão da orientação sexual, da identidade de gênero etc.)” são formas de degradação do outro que encontra poucos precedentes históricos. Daí porque o paralelo com a Alemanha nazista não é exagerado em termos axiológicos (mas apenas, por enquanto, quantitativos).
A câmera oculta de David France coloca o público na clandestinidade, isto é, na mesma posição em que os próprios ativistas estão. Pessoas como David Isteev e Olga Baranova não têm o know-how sobre ocultamento e transporte de pessoas, mas precisam improvisar e se unir para salvá-las da morte – evento que dolorosamente surge como opção melhor à sobrevivência. O apoio familiar pode ser o diferencial para prosseguir, no caso de quem não quer viver como um refugiado, mas “Welcome to Chechnya” mostra que nem todos pensam assim.
Tendo em vista que seu pai está no alto escalão do governo checheno, e considerando as chantagens de seu tio, o grupo liderado por David seria a única opção para Anya. A jovem de vinte e um anos, contudo, acaba se submetendo a um procedimento dificílimo de saída do país – e sem amparo afetivo algum. Situação diversa é a de Grisha, cujo arco narrativo é certamente o que mais comove. Quando o rapaz recebe abraços calorosos dos familiares, o espectador sente o alívio de quem finalmente consegue expirar todo o ar que inspirou e que não pôde expirar até então, com receio de ser percebido. O alívio, todavia, é momentâneo, pois a escolha de apoiar Grisha reverbera também nos familiares, de diversas formas. Todos se tornam refugiados. A emoção do rapaz é visível quando recebe Bogdan, precisando se conter em público. Mais uma vez, um simples abraço tem a força de centenas de guerreiros. Melhor que guerreiros, heróis.
O arco narrativo de Grisha é o que mais comove porque é o que é mais desenvolvido. O caso de Zelim Bakaev, por exemplo, é mencionado de maneira bastante superficial, o que não é justificado apenas pela falta de informações. A linguagem do documentário é dinâmica ao alternar entre imagens de celular e filmagens importadas para o filme (do próprio jovem, mas também de noticiário), porém subsiste uma lacuna a respeito de Bakaev (que é um aparte desnecessário na obra). Por outro lado, nos detalhes, percebe-se a riqueza da película, como os cenários (por exemplo, a precariedade do lar provisório de Anya) e o comportamento dos jovens (incontáveis vezes fumando para extravasar o pavor, ou então mascando goma, como no caso de Grisha, dentro do avião, onde não pode fumar).
É difícil comentar algo sobre “Welcome to Chechnya” diferente da comoção em relação às vítimas e do desprezo em relação aos seus ofensores (diretos e indiretos). São sentimentos extremos para quem tem um senso mínimo de humanidade. As cenas presentes na obra são apenas um recorte tocante de uma narrativa bem sufocante (porém, urgente).
Kadyrov defende a necessidade de purificar o sangue checheno – por via oblíqua, admitindo o genocídio da população LGBTQIA+. O cerne da questão, muito maior que qualquer análise cinematográfica, é que não se trata de uma causa gay, como alguns provavelmente enxergarão. A causa é humanitária. O filme precisa de visibilidade para que mais vidas possam ser salvas. Cabe a cada um fazer a sua parte e ajudar.
Em tempo: a fala exposta acima, em palavras bastante similares, foram ditas por Kadyrov em entrevista constante no filme.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.