“WATCHMEN” – Universo em expansão
A obra idealizada por Alan Moore nunca foi sobre heroísmo. Não foi assim entre 1986 e 1987, quando a HQ foi lançada pela DC Comics, nem quando foi adaptada para o cinema pelas mãos de Zack Snyder em 2009. Abordava vigilantismo, responsabilidades morais, natureza humana, significados do poder e outros temas sociológicos e filosóficos. A terceira versão segue a mesma tradição de dar outra roupagem à trama de super-heróis mascarados “salvando” o mundo, retomando as questões anteriores e dando alguns passos além: a série WATCHMEN da HBO constrói um rico e original universo que se sustenta.
Indagações quanto à relação entre a produção televisiva e as outras versões são possíveis, portanto o showrunner e criador Damon Lindelof retira tais dúvidas ao longo dos nove episódios. Trata-se aqui de uma livre continuação dos eventos finais ocorridos na graphic novel, novamente mostrando um mundo distópico em que justiceiros mascarados transitam na tênue linha entre o bem e o mal e continuam desprezados pela sociedade. No momento em que a série tem início, não é mais a Guerra Fria que atemoriza os cidadãos, mas a ameaça do surgimento de uma organização supremacista branca após um período aparentemente pacífico.
Por mais que existam vínculos com a criação de Alan Moore, o projeto da HBO constrói um universo próprio: mais próximo de uma utopia do que de uma distopia, os EUA se tornaram um país progressista sob a presidência de Robert Redford e dedicado a corrigir as desigualdades e os preconceitos raciais após o fim da bipolarização mundial com a URSS (painéis com vários figuras de negros pelas ruas, a caracterização do governo vigente como liberal em contraposição ao conservadorismo anterior de Nixon e a existência de um centro de reparação social e valorização cultural dos negros). A administração da sociedade também aparentava estar mais desenvolvida pelo fato de que os policiais precisariam de autorização de uma central para usar armas de fogo. Entretanto, a emergência da Sétima Kavalaria reacende os conflitos raciais, mobilizando-se violentamente contra os negros, arquitetando um misterioso e perigoso plano e obrigando os agentes da lei a portar máscaras para sua própria proteção.
É até possível encontrar alguns easter eggs que saúdam os fãs e criam paralelos com as obras anteriores (a chuva de lulas remete ao desfecho da HQ, a máscara dos membros da Sétima Kavalaria é a mesma do Rorschach, o formato do cookie feito por Angela lembra o smiley face, uma manchete de jornal especula sobre o destino de Ozymandias, portais interdimensionais são o assunto de uma conversa entre dois personagens, uma “piada” contada por Laurie se refere ao Comediante…), porém são elementos irrelevantes para a compreensão da narrativa. A importância maior reside nas implicações sociais da trama, principalmente quanto à deturpação das crenças de Rorschach e da aproximação dos policiais aos vigilantes mascarados, e no panorama histórico traçado, relacionado ao segregacionismo racial e à intolerância vistos na dramatização do massacre real em Tulsa em 1921 e na propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Além de contar com uma diegese envolvente a partir dos mistérios criados, a atenção também é conquistada pelo rico desenvolvimento de personagens (que não são poucos). Mesmo que o protagonismo esteja com Angela, cada coadjuvante tem sua contribuição para o enredo e episódios destinados a ele: Regina King dá à protagonista firmeza e fisicalidade compatíveis com as obrigações como policial na mesma proporção que atravessa uma sensível jornada de conhecimento de sua família e origens; Jeremy Irons confere a Adrian Veidt/Ozymandias uma mistura palpável entre inteligência e prepotência enquanto potencializa o mistério em torno de sua conexão com a narrativa em geral; Tim Blake Nelson faz de Looking Glass um policial paranoico, inflexível e atormentado por traumas do passado absolutamente críveis; Louis Gossett Jr. explora as potencialidades de Will Reeves ser alguém cujas motivações são desconhecidas e também sofre com o passado; Jean Smart dá à Laurie Blake um sarcasmo divertido e melancólico na sua busca por capturar mascarados; e Hong Chau faz de Lady Trieu uma mulher inteligentíssima que esconde segredos e camadas variados.
A evolução dramática se reflete igualmente na diversidade de estilos visuais e temáticos encontrados a cada novo capítulo. Geralmente subtramas acompanham todos os personagens e ocasionalmente os fazem se encontrar e interagir. Há ainda uma estrutura nuclear que faz um bloco ser o centro em torno do qual tudo o mais orbita. Em outro momento, flashbacks reconstroem simultaneamente a trajetória de Looking Glass e dos EUA após o fim da Guerra Fria. Mais à frente, o passado narrativo é reconstruído com uma fotografia preto e branco de alto contraste. Atravessando toda a temporada, existem questões periféricas que se aglutinam ao todo, como os legados familiares, as relações com divindades e dinâmica criador e criatura.
Uma camada temática se destaca tanto em comparação às outras que se torna uma das bases da série: a sensação de que o tempo corre urgentemente em direção a algo grandioso. Para isso, em muitas ocasiões são feitas referências à relógios, dentre elas o reparo de um relógio por Adrian, a encenação de uma peça sobre o relojoeiro pai de Dr. Manhattan, a inauguração de um gigantesco relógio por Lady Trieu e o simbolismo de um carro filmado do alto parecer esse objeto. Do ponto de vista técnico, o recurso mais utilizado para explorar a riqueza narrativa é a montagem, não apenas para transitar pelos núcleos com fluidez, mas também para criar rimas visuais (o olhar de uma personagem se transformar no design da arquitetura de uma igreja), intensificar o suspense (a sensação de que Adrian está à parte dos demais personagens sem se saber o motivo) e fortalecer o drama (o entrelaçamento entre as experiências de Angela e Will).
“Watchmen” retira inspirações e aspectos dramáticos de mais de uma fonte (a história norte-americana, a graphic novel escrita por Alan Moore e menos do filme de Zack Snyder). Esse fato, contudo, não permite afirmações de que a série da HBO não apresenta identidade ou somente repita o que já foi feito anteriormente. Pelo contrário, Damon Lindelof captou a essência do material original e criou sua própria versão narrativa e visual repleta beleza estética e dramatúrgica, visual e charme que comprova como boas ideias podem ser expandidas.
Um resultado de todos os filmes que já viu.