“VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI” – O social na intimidade [21 F. Rio]
Ken Loach é um cineasta com um histórico muito marcante de estilo cinematográfico, pautado na perspectiva social do mundo do trabalho relacionada à opressão do capitalismo sobre a classe operária – algo, por exemplo, observado em “Eu, Daniel Blake“. Tais traços são retomados em seu novo projeto, VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI, que traz a história de uma família inglesa tentando sobreviver unida às mazelas deixadas pela crise econômica de 2008. Nesses dez anos transcorridos, o desafio é conservar os laços emocionais do ambiente doméstico enquanto a sociedade desestabiliza o que deveria ser duradouro.
Após essa recessão, Ricky e sua família se encontram em uma situação financeira precária. Tentando amenizar o quadro, o patriarca adquire uma van para trabalhar com entregas enquanto sua esposa Abby luta para manter a profissão de cuidadora. Entretanto, a nova ocupação não traz a melhoria esperada, levando, pelo contrário, os familiares a ficarem uns contra os outros. Dessa maneira, a realidade mais ampla do país invade a casa dos Turner e desestrutura as relações amorosas de pais e filhos.
O cotidiano dos personagens e o cenário que os cerca são registrados meticulosamente por uma câmera que se move lentamente e enquadra aquela dinâmica como uma observadora. O diretor não se esquiva de criar momentos, basicamente, encarregados para o espectador contemplar as adversidades enfrentadas pelos pais: Abby cuida diariamente de idosos ou de pessoas com dificuldades de locomoção, estando sujeita àqueles que não aceitam os cuidados e agem agressivamente, mas também a outros que demonstram carinho e ternura por ela; e Ricky trabalha em uma transportadora entregando todo tipo de carga em jornadas exaustivas de pouco sono e mínimo contato com a esposa e os filhos Seb e Liza, além de suportar o chefe intransigente e explorador dos funcionários. Os jovens da casa também sofrem com a distância emocional dos parentes, fazendo com que a menina conviva com o peso emocional dos afazeres domésticos e o garoto passe mais tempo pichando paredes com os colegas do que na escola.
Tudo isso por conta da influência nociva do modelo de trabalho neoliberal em razão de suas características e consequências: na entrevista de contratação, o empregador usa um discurso de falso empreendedorismo, voluntarismo e cooperação para as funções da empresa e as interações entre empresário e trabalhadores – um disfarce da exploração capitalista sob a roupagem pseudomoderna da flexibilização das relações trabalhistas; e a própria figura do patrão que prioriza as entregas, o cumprimento dos prazos e o ganho financeiro à saúde e à segurança dos entregadores, sintetizada na cena em que desconsidera um pedido de Ricky alegando que todos possuem algum problema e, portanto, ser incapaz de auxiliar cada um. Assim, a narrativa evita a caricatura do empregador malvado ao trazer situações cotidianas de opressão econômica, como a insistência de arcar com as obrigações mesmo não estando saudável.
Portanto, a dimensões social e econômica atravessam a esfera privada afetando os personagens também em termos emocionais. O contexto pós-crise de 2008 é sentido do ponto de vista material, já que Abby precisa vender seu carro para permitir ao marido comprar uma van. Porém, o que mais se destacam são os conflitos interpessoais fruto das dificuldades financeiras: pai e filho brigam constantemente por conta do jovem não ir ao colégio e reprovar a trajetória profissional de “bicos” do homem; Liza se ressente por presenciar as agruras da família, tentando inutilmente ajudar como acha possível, e acaba intensificando os problemas; e a mãe se sacrifica pela família e pelas pessoas que cuida se esquecendo de si mesma e saltando das tentativas de conciliar Ricky e Seb para ocasiões em que socorre quem ela visita.
Ken Loach valoriza muito mais o roteiro do que artifícios visuais ou movimentos de câmera complexos. Consequentemente, as sequências são construídas para que os sentidos dramáticos sobressaiam pelo texto ou pela dinâmica dos personagens. É o que acontece nas passagens do dia em que a convivência familiar não tem seus quatro membros, demonstrando a incompletude daquele lar. São muito breves os momentos em que todos estão juntos e se divertindo, como ocorre na cena em que conversam animadamente em uma refeição – trata-se de uma intimidade logo interrompida pelo trabalho da mulher que a chama para uma emergência. Ainda assim, conseguem prolongar aquele convívio por mais alguns minutos de modo a indicar o afeto entre eles.
Por outro lado, a atenção especial ao roteiro não significa dizer que não há um esforço na composição do quadro. O estilo levemente documental, de uma câmera que mais observa do que interfere na vida daquelas figuras, dá o tom da narrativa e potencializa o realismo social. Além disso, cenas importantes recebem um enquadramento particular e expressivo, iniciando-se com planos mais abertos e lentamente se fechando sobre um dos personagens em cena para ressaltar dramaticamente algum elemento – por exemplo, o diálogo do pai e filho com o diretor da escola gradualmente é filmado para destacar esta autoridade e reforçar seu discurso.
“Você não estava aqui” é um filme político de viés social típico do cineasta, novamente assumindo uma dura crítica sobre o caráter predatório do capitalismo. A produção avança em uma escalada crescente de pessimismo até uma conclusão dramática e esperançosa, não sendo exatamente um desfecho para a história, mas uma indicação impactante para o espectador de como é o mundo fora da sala de cinema. Um mundo que abrange brigas e reconciliações de pais e filhos e ainda falha em corrigir as mazelas de um sistema econômico exploratório.
*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.