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“VIRA-LATA” – A relatividade da vulnerabilidade [48 MICSP]

A ambiguidade moral do protagonista de VIRA-LATA o torna uma personagem complexa e multifacetada. Com uma direção naturalista, o filme cria um contexto comovente sem se tornar um melodrama superficial. Analisando o conceito de vulnerabilidade, a obra demonstra o quanto ele pode ser relativo e como pode nortear (ou não) a conduta individual.

Em uma província no interior de Taiwan, um imigrante ilegal, Oom, trabalha como cuidador de idosos e pessoas com deficiência. Mesmo sem formação profissional, Oom tem habilidade no ofício e, na maioria das vezes, a confiança de seu chefe, cujas atividades escusas geram desconfiança de seus colegas. Um evento envolvendo outra cuidadora, porém, é o início de complicações para todos.

(© Alpha Violet / Divulgação)

Depois de alguns trabalhos com curta-metragens, surpreende a maestria com que Wei Liang Chiang dirige o longa (tendo ainda You Qiao Yin como codiretor). Com uma proposta bastante naturalista, sua obra não possui sons extradiegéticos e sua interferência é mínima, por exemplo ao prevalecerem planos estáticos (a única exceção de destaque ocorre em uma cena em que o som externo da chuva tem seu volume aumentado, para fins dramáticos). Sem brandura, até mesmo a primeira cena gera desconforto, demonstrando de maneira crua um dos dissabores do trabalho de Oom. Chiang adota um padrão de filmar as personagens de costas (o que é por si só contra-intuitivo), empregado como uma alegoria para a vergonha que sentem (ou deveriam sentir) diante de suas condutas, iluminando as atuações quando os rostos aparecem.

Esse padrão também transmite certo pesar subjetivo e serve ainda para alargar o tom contemplativo adotado pelo diretor, a despeito da pouca profundidade de campo. A adoção de razão de aspecto reduzida reforça a sensação de aprisionamento sentido por todas as personagens, que sentem que não têm saída da situação difícil em que se encontram (tanto os cuidadores quanto os pacientes e seus familiares). O ápice do encarceramento ocorre quando o diretor coloca Oom em sobre-enquadramento, na chuva, sendo repreendido. Para ampliar a opressão, a fotografia é bastante escura e os planos são fechados, reforçando que não há saída ou sequer esperança. Chiang, que também escreve o roteiro, aproveita o poder da linguagem não-verbal, como na troca de olhares quando a Tia Mei (Yi-ching Lu) e Oom se reencontram após o pedido feito por ela e na cena em que Oom deixa restos de comida para cachorros. O script cria um mistério sobre o contexto em que Oom se encontra e não fornece explicações pormenorizadas a esse respeito, como os acordos do chefe e a facilidade de conseguir novos cuidadores. Porém, elas são desnecessárias, funcionando como um subtexto sutil e suficiente como mola propulsora para a trama.

O que é central é um conjunto de questionamentos éticos envolvendo Oom. Interpretado com muita emoção por Wanlop Rungkumjad, o protagonista aparenta ser contraditório: como pode a mesma pessoa que trata seus pacientes com tamanho cuidado ser instrumentalizado por uma pessoa tão vil quanto Hsing (Yu-hong Hong), seu chefe? De fato, o sorriso afável com que ele dá o celular para a criança trancada em casa com ele não parece o mesmo sorriso visto quando ele canta no karaokê. A tranquilidade com que sempre tenta acalmar Hui (Shu-wei Kuo, que apresenta a atuação mais impressionante; a cena em que implora para a mãe não deixá-lo é fulminante) também destoa da explosão iminente com que satisfaz um desejo urgente do paciente, provocado por um colega. O compasso moral de Oom é claramente norteado pelos mais vulneráveis, com convicções firmes que superam a sua fidelidade canina a Hsing.

Oom está quase sempre com fone de ouvido, como se quisesse se livrar dos grilhões que o colocam naquelas condições. Sua sensibilidade para com pessoas que demandam cuidado é tocante, o que torna ainda mais contraditório o seu comportamento quando ele age sem essa sensibilidade em relação a outras pessoas. Hsing, por exemplo, é muito mais coerente: presenteia Oom quando faz algo que lhe agrada, geralmente com migalhas como um cigarro, mas se torna agressivo, verbal e fisicamente, quando o empregado faz algo de que desgosta. O protagonista, na realidade, não é contraditório, mas ambíguo. Não é possível afirmar que ele seja uma pessoa boa, tampouco que seja ruim; é justamente essa ambivalência que o torna fascinante. Esse tipo de complexidade é também o que o próprio Oom aprende ao repensar o pedido da Tia Mei. “Vira-lata” é um filme poderoso e verdadeiramente tocante porque sensibiliza o espectador não somente com cenas capazes de levá-lo às lágrimas, mas sobretudo porque o estimula a compreender que ninguém ali está em situação fácil e que, em alguma medida, todos são vulneráveis. A solução que Oom encontra, então, não poderia ser outra.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).