“VIDAS SELVAGENS” – Camadas de indivíduos, estilos e conflitos sociais
Os primeiros olhares apressados para VIDAS SELVAGENS podem simplesmente captar suas semelhanças com “Lost” e “Euphoria”. A série original da Amazon Prime Video também se passa em uma misteriosa ilha deserta e enfoca dilemas de adolescentes, mas está longe de ser um derivado preguiçoso ou uma colagem nada criativa de referências. A cada nova nuance apresentada, a produção estimula a curiosidade intelectual e exercita os vínculos emocionais do público.
Somente através da trama não seria possível se desvencilhar de comparações com outras obras. Um grupo de nove jovens meninas sofre um acidente aéreo enquanto viajava para o acampamento feminino “O despertar de Eva”. Presas em uma ilha deserta, precisam lutar pela sobrevivência, sem desconfiar que, na realidade, fazem parte de um elaborado experimento social. Ao mesmo tempo que aprendem a conviver umas com as outras, seus segredos e traumas vêm à tona.
A criadora Sarah Streicher quebra as eventuais acusações de plágio ou de referências simplificadas com uma narrativa que se desdobra aos poucos. A estrutura não é linear e é composta por distintas linhas temporais: em cada episódio, uma adolescente relata suas experiências no local para um policial e um terapeuta após aparentemente terem sido resgatas e levadas para uma instalação científica. A partir desse ponto de partida, acompanhamos o que ocorreu a Leah, Rachel, Nora, Fatin, Martha, Toni, Dot e Jeanette após a queda do avião; as histórias de vida de cada uma delas contadas em flashbacks; e os enigmáticos núcleos envolvendo o agente Young e o Dr. Daniel e a diretora do projeto Gretchen Klein. Porém, quando os espectadores acreditam saber como as inserções do passado serão feitas, a narrativa constrói soluções criativas para manter as alternâncias de ponto de vista e temporalidades.
Enquanto a condução dos capítulos envereda por escolhas estilísticas variadas, todas as personagens juvenis ganham protagonismo em certo momento (apesar de Leah ser o eixo central). Desse modo, os conflitos pessoais de todas elas tomam a tela, reunindo os depoimentos na instalação, os fatos na ilha e as experiências traumáticas de suas vidas para criar retratos multifacetados e complexos de cada uma – é assim que temas como depressão, homofobia, fanatismo religioso, abuso infantil, machismo, ansiedade social, bullying e estereótipos sociais são abordados. E por mais que as jovens sempre revelem uma camada diferente, elas são atormentadas pelo mesmo elemento; o patriarcado existente em ações individuais, instituições e na sociedade como um todo, afinal seus conflitos vêm de uma figura masculina ou de pressões sociais calcadas na estigmatização das mulheres.
Novas nuances são criadas para a abordagem estética das trajetórias das personagens. Seria limitador se elas fossem representadas e desenvolvidas apenas através de diálogos e acontecimentos da trama, por isso os diretores buscam recursos expressivos para tentar dar conta da complexidade daquelas figuras. No primeiro episódio, a sobreposição da narração em voice over de Leah às imagens de apresentação das adolescentes contextualiza as dificuldades de ser mulher na contemporaneidade; no mesmo capítulo, a encenação de como cada jovem reage à turbulência da aeronave diz muito sobre suas personalidades; adiante, cenas visualmente estilizadas demonstram anseios íntimos das personagens na forma de projeções mentais; e a intercalação de momentos cronologicamente distintos pela montagem simboliza o confronto com questões internas.
Por um viés particular, a série também contempla discussões sociológicas mais profundas do que a sinopse sugere. De maneira simbólica, a permanência em um lugar inóspito e misterioso invoca reflexões sobre a relação entre indivíduo e sociedade, que remetem ao debate entre autores como Durkheim e Weber acerca da coerção das estruturas sociais e o espaço para as atitudes individuais. Tais questionamentos cabem à medida que a natureza interfere na luta pela sobrevivência das jovens, no que tange à busca por abrigo, à proteção contra intempéries e à obtenção de água e alimento. Essa simbologia deixa marcas profundas em muitos sentidos, tanto físicas (a pele irritada pelo sol e pela desidratação ou a sujeira acumulada no corpo) quanto emocionais (a dinâmica ora integradora oura conflituosa entre as personagens).
A própria discussão sociológica se ramifica para outras camadas interpretativas quando os núcleos fora da ilha se encontram. As intenções de Gretchen com o experimento e seu comportamento para viabilizá-lo são gradualmente reveladas de modo a possibilitar reflexões de outro tipo: especialmente o discurso de promover a união e a cooperação entre as adolescentes segue uma lógica de empoderamento feminino, capaz de evocar pensadoras como Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, Bell Hooks e Rebecca Solnit. Contudo, em termos dramatúrgicos, essas linhas narrativas custam a engrenar devido ao pouco envolvimento emocional com os personagens coadjuvantes e à entrega de poucos elementos para sustentar o mistério – após um oitavo episódio demasiadamente expositivo, a subtrama define a abordagem de suspense necessária.
Combinando os dramas das nove jovens com o mistério de um projeto jamais revelado por completo, “Vidas selvagens” atravessa toda a primeira temporada ressaltando como cada aspecto se enriquece com múltiplas camadas. As protagonistas não se enquadram em características limitadoras de suas aparências; a construção estética busca diversas possibilidades expressivas para encenar uma experiência tão adversa; e a dimensão temática em torno dos vários entendimentos de conflitos sociais se desenvolve, mostrando como o experimento de Gretchen se (des)equilibra com visões contraditórias da interação entre indivíduo e sociedade. Tantas nuances se manifestam no décimo episódio, quando leituras sociológicas e religiosas se encontram com um eficiente cliffhanger para preparar outra temporada com mais camadas diferenciadoras de “Lost” e “Euphoria.”
Um resultado de todos os filmes que já viu.