“VIDAS PASSADAS” – Busca pela palavra ou pelo toque que conecta [25 F. RIO]
Em uma conversa entre Nora e Arthur, ela explica o conceito de In-Yun para a Coréia do Sul como uma espécie de destino, providência para os relacionamentos entre as pessoas. Na sua fala, exemplifica que se dois estranhos passam um pelo outro na rua e suas roupas se roçam acidentalmente, deve ter havido algo entre eles em vidas passadas. Qualquer pessoa já deve ter experimentado sensação similar ao esbarrar com alguém e achar que o conhece de algum lugar ou sentir uma ligação forte com uma pessoa que conhece há pouco tempo. VIDAS PASSADAS parte dessa percepção facilmente reconhecida de vidas que se entrelaçam em distintas existências para ser um drama romântico da incompletude e do não concretizado.
Na Young e Hae Sung se encontram e se desencontram repetidas vezes. Eles são amigos de infância com uma profunda conexão, mas se separam quando a família da jovem decide se mudar da Coréia do Sul. Vivendo nos EUA, ela trocou de identidade para se chamar Nora. Doze anos depois, os amigos retomam o contato conversando à distância por chamadas de vídeo até novamente deixarem de se falar. Outros doze anos se passam, Nora e Hae Sung se reencontram em Nova York e refletem sobre como suas vidas efetivamente foram e como poderiam ter sido.
A estreia da dramaturga Celine Song como diretora de longas-metragens coloca em questão temas como amor, destino, memória, relacionamento, tempo, separação e reencontro. Tudo é desenvolvido a partir de três linhas temporais que se sucedem em um intervalo de doze anos: a infância de estudo na mesma escola, o início da vida adulta com os primeiros trabalhos da protagonista como dramaturga e os estudos universitários do protagonista como engenheiro, e a maturidade das vidas profissionais estabelecidas para ambos e emocional para Nora pelo casamento com Arthur. À medida que os personagens atravessam o tempo fílmico de vinte e quatro anos, podemos notar as mudanças físicas de cada época (o crescimento da altura, o cabelo grisalho…) e a reinvenção das suas trajetórias sem contato entre si (a conclusão dos estudos, a moradia em países diferentes, as relações amorosas, o uso dos idiomas inglês e coreano…). As mudanças fazem o conceito de In-Yun ser absorvido pela estrutura narrativa, que representa as três temporalidades como vidas distintas das mesmas pessoas.
Como denominador comum dessas três existências, estão sentimentos contrastantes que se combinam muito bem nas experiências de encontros e desencontros. Celine Song trabalha o filme na combinação entre carinho e melancolia, surgida pelo afeto que os protagonistas sentem um pelo outro e pelo pesar de não poderem ficar juntos. A afeição melancólica fica evidente nas lacunas criadas a cada tentativa de conexão que se frustra sem toques corporais ou palavras afetuosas. No tempo de colégio, Hae Sung e Na Young passam pela primeira separação por decisão da família dela. É bastante palpável a saudade que o menino sentirá com a partida da amiga, levando em consideração a convivência entre eles como se nota na conversa entre os dois sobre as notas nas provas. Quando a notícia da viagem circula, a diretora usa os silêncios e a distância geográfica para traduzir visualmente esse distanciamento. Enquanto ela conversa com as colegas sobre querer ganhar um prêmio Nobel nos EUA, ele se mantêm afastado só observando. No último instante em que se veem, caminhando para casa, Hae Sung apenas diz adeus e os dois jovens seguem em direções opostas como se percebe no quadro dividido em duas partes.
Doze anos mais tarde, os dois personagens restabelecem algum contato. A procura de Hae Sung pela amiga e a curiosidade de Nora pelo paradeiro do amigo os fazem retomar as conversas em ligações de vídeo pelo computador. Como reagir ao rever alguém tão querido do qual não se tinha notícia por tanto tempo? As primeiras reações serão de satisfação e alegria por poder olhar e conversar novamente com o outro, apesar de mediados pela tecnologia. Em seguida, o interesse pelo que tem acontecido ao outro aparece em perguntas sobre as vidas de cada um deles até aquele momento. Sob outras formas, os silêncios e a distância geográfica ainda se colocam como barreiras para o encontro pleno das duas pessoas. Hae Sung tem sentimentos mais profundos por Nora que não se consumiram em um romance, mas ele não o expressa quando se reveem, limitando-se a verbalizar a saudade que sente. Eles estão distantes geograficamente se comunicando por telas, cada um em continentes diferentes, e também simbolicamente, a mudança de nome da mulher marca o início de uma nova vida. Por sua vez, Nora também sente saudade e sofre com a impossibilidade de reencontrar fisicamente seu amigo por conta do estágio em que sua vida profissional se encontra.
O último período de tempo narrado já é apresentado na sequência inicial através da técnica de in media res (começar a narrativa no meio da história em um instante chave). Dois homens e uma mulher estão em um balcão de bar bebendo, observamos a cena enquanto alguém que não se vê no quadro especula a respeito da relação que os três deveriam ter e a mulher olha em direção ao público tendo consciência de estar sendo observado em um ato voyeur. Na expressão dela, existem mistérios que não conseguimos decifrar: que emoção está sentindo? como está reagindo à presença daqueles homens? está se divertindo com a curiosidade alheia? Após a primeira sequência, a narrativa retrocede para o princípio do tempo fílmico tal qual um processo de regressão para vidas anteriores daqueles personagens. Quando avançamos novamente, o trio passa a ser conhecido e a dinâmica esclarecida. Nora está casada com Arthur e Hae Sung viajou para Nova York para visitar a amiga. Nos passeios que fazem, os velhos amigos até se reconectam a partir de suas memórias afetivas, mas os silêncios predominam quando olhares expressivos são trocados e as mãos quase se tocam para revelar o que sentem e não verbalizam.
As atuações de Greta Lee e de Teo Yoo são importantes para desenvolver este drama romântico que fica no campo das possibilidades. Consciente do poder de seu elenco, Celine Song constantemente fixa a câmera nos atores e faz planos longos sem cortes para permitir aos atores expressar o que sentem nos subtextos de seus diálogos ou nas expressões faciais silenciosas. Quando Nora, Hae Sung e Arthur interagem, outra forma de distanciamento se coloca: a língua. A comunicação não é plena utilizando o inglês e o coreano, o que aliena Arthur e faz os outros se comunicarem com maior frequência. A incomunicabilidade isola o norte-americano. algo reforçado pela decupagem que o exclui da conversa no bar, centraliza os planos em Nora e Hae Sung e mobiliza muito bem o incômodo sentido pelo público ao presenciar um diálogo desolador sobre o romance que poderia ter havido entre eles. O que poderia ter sido e não foi molda as preocupações de Arthur com o recém-chegado, as projeções saudosistas de Hae Sung e o discernimento das transformações possíveis para as vidas de Nora.
“Vidas passadas” se assemelha a outros filmes de romance que também se apoiam nas idas e vindas de um casal. Podemos pensar em “Guerra Fria” de Pawel Pawlikowski e “Amores expressos” de Wong Kar-Wai, ambos interessados pela discussão sobre a persistência ou não de relacionamentos que desafiam eventos ou realidades que afastam as pessoas antes conectadas. No primeiro caso, a dimensão política dos conflitos da Guerra interferem na consumação do amor. No segundo caso, a desintegração de relações sólidas em tempos pós-modernos dificulta o prolongamento de vínculos que se mostram passageiros. E no trabalho de Celine Song, a transculturalidade pode impactar na manutenção de relacionamentos que precisam contemplar múltiplas necessidades dos indivíduos envolvidos (o contato com culturas distintas, a elaboração de variados projetos de vida, o distanciamento geográfico crescente…). Porém, algumas relações também podem estar fadadas a não acontecer apesar do carinho existente como se evidencia na sequência final em que outros olhares silenciosos antecedem a expressão direta das emoções de Nora.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.