“VERMIGLIO” – Quando a alienação não é ruim [48 MICSP]
Ao invés de abordar as consequências da Segunda Guerra em uma cidade no interior da Itália, o foco de VERMIGLIO está na alienação daquelas pessoas a despeito dessas consequências. O longa não tem a pretensão de inovar, mas é fiel à sua proposta, muito bem executado e possui um charme inerente a essa alienação, cujo sentido não é mais usual.
No pequeno vilarejo de Vermiglio, nos Alpes italianos, no ano de 1944, a chegada de Pietro, um soldado desertor, abala a vida de uma família quando ele e Lucia, a filha mais velha, se apaixonam. Para essas pessoas, o amor que floresce e a guerra que se encerra não são bons presságios.
A diretora e roteirista Maura Delpero demonstra habilidade no uso da linguagem não verbal, como na cena em que a mãe percebe a gravidez da filha e elas se comunicam sem falar nada. Isso é apenas um dos vários exemplos de sua direção sólida. Outro exemplo ocorre com as elipses, que se dão de maneira orgânica através, mais uma vez, do uso do não verbal. Ao invés de pontuar datas, Delpero usa elementos imagéticos e sonoros para demonstrar a passagem do tempo: a transição do inverno para a primavera e para o verão é percebida pela fotografia (a neve dá lugar a gramados com um forte verde e floridos), pelo figurino (em especial pela mudança na quantidade de vestimentas) e até mesmo pela trilha (o sopro do vento dá lugar para o canto dos pássaros e para o farfalhar das folhas).
O filme apresenta bem o Zeitgeist, elemento fundamental na construção da narrativa. Com isso, o machismo inerente a um vilarejo bucólico da década de 1940 tem presença constante em detalhes, como no comentário do cabelo de uma mulher, mas também em elementos de maior relevância, como alguns dos atritos entre Adele (Roberta Rovelli) e o professor (Tommaso Ragno). O fato de o fio condutor narrativo ser o romance entre Pietro (Giuseppe De Domenico) e Lucia (Martina Scrinzi) sugere um protagonismo do casal, o que não é uma verdade completa, uma vez que há considerável espaço para outros membros da família. É o caso de Dino (Patrick Gardner) e Ada (Rachele Potrich). Com Dino, o roteiro esboça uma subtrama de coming of age conflituoso e embalada com uma superproteção materna. Com Ada, ele vai mais longe e aborda uma sexualidade mal compreendida, mas muito sentida – e bem divertida para o espectador.
A guerra faz parte da vida daquelas personagens de maneira indireta (e em maior ou menor medida), sendo ofuscada por uma alienação cuja conotação é surpreendentemente positiva. Paira no longa uma atmosfera leve graças à notória ingenuidade das pessoas que habitam Vermiglio – salvo, é claro, do professor, que é um dos poucos daquele lugar que sabe que, “se todos fossem covardes (como Pietro), talvez não houvesse guerra” -, que seguem suas vidas sem compreender a proporção do evento que está ao mesmo tempo próximo e distante. Para reforçar essa ingenuidade, a diretora abraça a perspectiva das pessoas mais jovens, obtendo como fruto um humor bastante agradável. É o que ocorre nas cenas envolvendo os prazeres de Ada e mesmo com o romance de Lucia e Pietro (o contexto do pedido de casamento, as piadas com as cartas enviadas a ela…). O distanciamento em relação à Guerra, todavia, é relativo, como se percebe dos ruídos dos aviões passando e da percepção da mãe de Attilio sobre todos os homens, incluindo o filho.
Ou seja, os habitantes do vilarejo sentem, cada um à sua maneira, os efeitos da Guerra. Entretanto, existem também aqueles que são quase alheios ao terrível evento, não sabendo ao certo o seu significado e seguindo suas vidas como se Vermiglio estivesse em uma bolha. De certa forma, Maura Delpero ressignifica a palavra “alienação”, que aqui não recebe uma carga axiológica negativa. A sensação é de que os Alpes italianos realmente estavam no limiar da fuga da triste realidade (o que é corroborado, aliás, pelos planos contemplativos da natureza do local), algo desejável para todos.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.