“VERÃO DE 85” – Navegando para ser livre
“Sailing” é uma canção composta por Gavin Sutherland que se tornou célebre na voz inconfundível de Rod Stewart. Nas duas primeiras estrofes, o eu lírico está navegando de volta para casa, mesmo com o mar agitado, para estar perto de determinada pessoa. A companhia da pessoa é tão preciosa que o eu lírico voa para estar junto dela, tornando-se, assim, livre. Nas duas estrofes seguintes, ele afirma que está morrendo para estar junto dessa pessoa. Na penúltima, ambos navegam de volta para casa; na última, dirige-se a Deus para afirmar que estará perto dele e assim ser livre. A pessoa amada está morta e morrer significa estar livre e em sua companhia. Romântica, porém fúnebre, “Sailing” tem o mesmo espírito de VERÃO DE 85, filme em que a música tem enorme significado.
Velejando sozinho, Alex vê a morte de perto antes de ser salvo por David. A pouca diferença de idade (dezesseis e dezoito anos, respectivamente) e o interesse por velejar os aproxima. A forte amizade progressivamente se transforma em algo mais, mas David pode não ser quem Alex quer e a relação tem trágicos desdobramentos.
O lado trágico do filme é anunciado pelo prólogo in media res, quando Alex expõe seu interesse pela morte e afirma que esse é o tipo de história que ele irá contar. Como um exemplar de narrador não confiável, o que Alex fala não é bem verdade: “Verão de 85” é sobre primeiro amor e romance de verão, no melhor estilo “Me chame pelo seu nome”. A associação é inevitável: Alex e Elio são mais jovens, portanto menos experientes, mais impulsivos e menos conscientes sobre sua sexualidade; David e Oliver, na comparação, constituem o oposto, embora Alex e Elio sejam muito mais similares que os outros dois. O romance de Alex e David é efêmero como o de Elio e Oliver, mas marcante, para cada um, na mesma medida. A mãe de David é acolhedora como os pais de Elio; assim como Oliver, David é mais extrovertido e bastante sociável, diversamente de Elio e Alex.
Os paralelos entre as duas obras não são apenas temáticos e de personagens, mas também estéticos. Enquanto o filme de Luca Guadagnino se passa no litoral italiano em 1983, o de François Ozon, no litoral francês de 1985. Como resultado, as paisagens são de mar e a moda é deveras particular. Na prática, cenários predominantemente abertos, muito uso de jeans, roupas de cores claras – no filme francês, as cores verde mar e azul céu marcam forte presença – e shorts curtos. “Verão de 85” não tem a qualidade de “Me chame pelo seu nome”, mas a comparação é razoável.
Alex fala muito de morte e ela está de fato presente, contudo nem sempre com a carga dramática que o prólogo leva a crer (basta ver o conteúdo do pacto entre os dois garotos). Baseando-se no livro de Aidan Chambers, Ozon escreve o roteiro colocando Alex não apenas como protagonista, mas como um narrador bastante parcial. Isso significa que as impressões sobre David não necessariamente são verdadeiras (algo percebido pela personagem Kate), que pode não corresponder à visão de Alex. O uso de voice over se justifica pelo ponto de vista adotado, assim como pela metalinguagem e pelas duas linhas temporais. Visualmente, elas se distinguem pela paleta de cores (o presente diegético tem cores mais escuras, como o marrom), pelas personagens (o que inclui maquiagem nos olhos de Alex) e, por vezes, pelo próprio conteúdo. A montagem também serve de ajuda ao intercalar os dois tempos, como ao mostrar Alex e David comprando roupas e, na sequência seguinte, exibir o que o primeiro faz com elas.
Fiel ao erotismo que é uma constante em suas obras, em “Verão de 85” François Ozon não faz diferente. Quando Alex coloca sua calça, o diretor coloca a região da sua genital em close, apontando que é para lá que David está olhando. Não há tabus, seja em uma ereção, seja na sexualidade ou, é claro, na nudez. Entretanto, quando David, nu, acaricia o corpo (também nu) de Alex, o foco não está no aspecto sensual da cena, mas espiritual, pois eles estão se entregando ao amor. Há várias cenas despidas do erotismo (no cinema, no parque de diversões) e esse aspecto, quando presente, é alçado ao nível da sugestão (quando o casal coloca curativos um no outro, estão na verdade fazendo amor).
Alex e David são, cada um à sua maneira, dois sedutores: o primeiro, um “coelhinho” cuja beleza pueril, associada à ingenuidade, cria uma imagem quase angelical que contrasta com seu discurso cadavérico; o segundo, uma explosão de hormônios que o impelem a flertar com tudo e com todos, a todo momento. Félix Lefebvre e Benjamin Voisin se encaixam perfeitamente nos perfis respectivos, mas Voisin mostra mais seus dotes porque David é uma personagem mais adulta e, por isso, mais ambígua. Se Alex é o apaixonado de primeira viagem; David é a mescla do envolvente com o imprudente.
Na primeira vez em que toca “Sailing” no filme, o casal aproveita uma festa cujas luzes psicodélicas e a música anterior contrastam com o nirvana atingido por Alex. Sua expressão de gozo é comparável apenas ao momento de subjetividade mental na loja, sendo, em todo caso, um contexto do etéreo e do profano, completamente diverso daquele da morte tanto mencionada pelo protagonista. David e Alex estarão sempre navegando para estarem simbolicamente juntos e livres.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.