“VERÃO” – A energia universal da música [20 F. Rio]
O rock independente na URSS da década de 1980 pode parecer uma realidade muito específica e incomunicável para plateias ao redor do mundo. O tema pode despertar, junto ao público, dúvidas quanto à possibilidade de identificação com seu período e seu estilo. VERÃO vai contra essas suposições ao abordar o cenário musical soviético a partir de questões que ultrapassem particularidades regionais e cronológicas: essencialmente, a força e os desafios da arte.
O drama biográfico de época se passa no verão de 1981, quando o rock underground chegava à soviética cidade de Leningrado sob influência de artistas estrangeiros, como Led Zeppelin e David Bowie. Entre os jovens artistas independentes que aparecem está Viktor Tsoi, também conhecido pelo triângulo amoroso vivido com seu mentor musical, Mike, e sua esposa, Natasha. Apesar de o romance entre os três personagens figurar como parte integrante da trama, ele está a serviço do interesse central do filme: o processo de produção artística em diálogo com o contexto em que se localiza.
O modo de vida dos roqueiros e as características do seu ritmo são acompanhados meticulosamente pelo diretor Kirill Serebrennikov, em uma postura analista e investigativa que procura sentir a dinâmica e as relações entre os músicos. A câmera está sempre próxima dos personagens, segue a movimentação deles e enquadra os diferentes momentos que compõem a criação musical (o processo criativo na elaboração das canções, o lazer descompromissado dos artistas e a apresentação dos espetáculos). Dependendo de cada sequência exibida, o cineasta adota procedimentos visuais específicos: em instantes intimistas, os planos são longos e abertos que promovem uma imersão no universo artístico distante da indústria cultural de massa; nas apresentações do rock, a energia se intensifica com movimentos constantes da câmera e muitos cortes que transmitem a vivacidade do ritmo.
Além disso, Kirill Serebrennikov trabalha a trilha sonora de forma muito integrada à narrativa e não apenas mostrando a rotina de criação e os shows. O cineasta utiliza uma estética de videoclipe para construir algumas sequências musicais vibrantes e contagiantes, capazes de levar o espectador a acompanhar a pulsação das canções. Tais momentos abraçam um realismo fantástico por conter inserções gráficas de palavras, cores e objetos desenhados, responsáveis por energizar as músicas e as performances de seus realizadores de forma criativa. São sequências que remetem ao gênero musical, pois surgem esporadicamente para comentar o estado de espírito dos personagens ou a situação em que o rock se encontrava no período – é interessante também perceber que a fantasia das sequências é construída pelos aspectos visuais, pela coreografia dos figurantes e por um personagem, constantemente, avisando que aqueles momentos não haviam acontecido exatamente como eram mostrados.
É possível experimentar a força da arte também através da fotografia em preto e branco, assinada por Vladislav Opelyants. Essas cores, por vezes também tendo o cinza, ajudam a representar o caráter visceral e underground do rock produzido nas vielas e nos espaços periféricos da URSS – ainda que ganhe repercussão nacional, o gênero musical feito por Viktor Tsoi e por seus companheiros não abandona uma origem independente proveniente de praias, casas dos próprios músicos e pequenos estúdios. A iluminação em preto e branco ainda tem belas variações estéticas executadas com qualidade técnica, dependendo do cenário filmado: filtros de luz natural irradiam alguns tons reconhecíveis, como o Sol em seu ápice, o pôr do sol e a escuridão da noite; e filtros de luz artificial dos aparelhos musicais preenchem as locações e os semblantes dos personagens. Em contraposição a essa fotografia, há algumas sequências dos artistas se divertindo juntos, filmadas em cores e em uma razão de aspecto menor, que se assemelham a registros caseiros de arquivo.
O estilo dado ao filme pode se sobressair, porém não oculta a abordagem que dá rock na URSS da década de 1980. Não se trata de um filme político, preocupado em descrever ou analisar a Guerra Fria ou os antecedentes do declínio do socialismo soviético. A opção é examinar o cenário musical do rock independente a partir de questões políticas próprias da conjuntura: as influências estrangeiras de grandes roqueiros norte-americanos ou britânicos no tipo de música produzido no Leste Europeu; a condenação dessas influências por parte da sociedade (em uma sequência passada dentro de um ônibus, um passageiro diz que aquele ritmo pertencia ao inimigo ideológico, em referência aos EUA); e a necessidade de lidar com a censura oficial do governo, preocupada em aprovar obras apenas com alguma consciência social para a classe trabalhadora (expressa também pela proibição de reações eufóricas do público que assiste aos shows de rock).
“Verão” não é o típico filme musical encontrado em grande quantidade no circuito. Ele não se debruça com profundidade sobre o contexto histórico do qual faz parte (não o ignora, mas também não se apoia tanto nele); não se utiliza da clássica fórmula de surgimento, ascensão, queda e superação de bandas ou músicos; nem possui um conflito dramático para mover a narrativa (o triângulo amoroso não é tratado assim). A escolha é ser uma produção sensorial, que possa proporcionar inúmeras sensações e cativar o público com a universalidade da boa música.
*Filme assistido durante a cobertura da 20ª edição do Festival do Rio (20th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.