“UNCLE FRANK” – Ser ou não ser, simplesmente somos
“Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer, dormir, só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita, eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer, dormir… dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!”.
O parágrafo acima é um trecho constante na primeira cena do terceiro ato do clássico literário “Hamlet”, escrito por William Shakespeare (tradução de Millôr Fernandes). O fundo filosófico do monólogo é sobre a própria existência, tema também presente no filme original Amazon UNCLE FRANK. A sinopse oficial não é recomendável, pois revela spoilers que podem atenuar a experiência. Basta saber que, em 1973, quando Beth é aprovada na Universidade de Nova Iorque, ela se aproxima de seu tio Frank, que é professor na instituição, uma aproximação que a permite conhecê-lo melhor que qualquer outro familiar.
O que une Beth e Frank é que os dois são marginalizados dentro da própria família. Frank é o intelectual que abandonou Creekville (Carolina do Sul) para uma vida supostamente glamourosa em Nova Iorque. Beth parece que adotará trajetória semelhante, escolhendo o desenvolvimento intelectual ao invés de, por exemplo, se casar e se tornar mãe. A jovem é iniciada nos cuidados maternos quando os pais mandam que dê atenção aos enérgicos irmãos menores; o tio é alfinetado por tudo que se mostre possível (uma boa embalagem para presente se torna algo negativo, o próprio presente é mal visto pelo destinatário). Frank é o único que dá atenção para Beth, o único que a olhava nos olhos, que a tratava como uma pessoa digna de atenção e carinho. Ela não entende por que ele é tratado mal se ele é, nas suas palavras, “inteligente, engraçado e talentoso”; somente a aproximação a faz entender – e até mesmo conhecer um universo rodeado por tabus (em especial) na época.
Alan Ball coloca Frank inicialmente em uma aura misteriosa, quiçá mágica, quando ele aparece pela primeira vez na contraluz, ao pôr do sol, na sacada da casa da família. Paira nele uma atmosfera quase idílica, o que é crescentemente dissolvido à medida que Beth a conhece melhor. Frank não é perfeito, muito pelo contrário. Paul Bettany compreende a personalidade implosiva do papel, acumulando insatisfações e sentimentos de culpa, vergonha (talvez até mesmo repulsa) e raiva. A contraposição com Wally, interpretado encantadoramente por Peter Macdissi, resulta em uma química (ainda mais) heterodoxa para os olhos da Beth de Sophia Lillis. Ela conhece não um universo, mas talvez universos novos, nos quais se pode ser quem quiser (Beth ao invés de Betty), porém pagando algum preço (no caso de Sam).
Para ampliar a desconstrução de Frank, o diretor o coloca em corredores apertados, aliás, o próprio apartamento da personagem é pequeno, o que, filmado em lente grande-angular (uma constante no longa), transmite uma sensação de enclausuramento. Afinal, Frank está sendo reprimido sempre pela família; querendo ou não, seu backstory é de um profundo trauma com o pai cuja ferida ainda dói. Por mais que Wally o ajude a curar a ferida, talvez sendo fundamental nessa função, cabe ao próprio herói cumprir seu destino. A punch scene (a do testamento) mostra o quão bem está Bettany no papel, mostrando uma intensidade tão forte na atuação que é impossível que a plateia não sinta empatia pela personagem. Alan Ball não escreve um roteiro impecável, inserindo, por exemplo, personagens de serventia questionável para a trama (é o caso do Bruce de Colton Ryan), mas utiliza com maestria os flashbacks em subjetividade mental, principalmente por deixar uma lacuna cirúrgica do ponto de vista narrativo (os flashbacks só fazem sentido integral quando encerram seu arco, o que faz sentido porque estão na mente confusa de Frank).
A cena do banheiro tem intimidade e ternura ao terminar com um beijo, mas é apenas uma faceta de Frank. Ele pode ser uma farsa, mas pode ser quem é. Ele pode ouvir jazz e comer bacon em sua casa, o que não é do agrado de Wally, o que não pode é deixar de ser. O choque cultural entre os dois não importa, tampouco o choque geracional (como quando a tia Butch fala sobre valores como reputação e pecado). Como suporte ao herói estão Wally e Beth, mas também podem estar sua mãe (vivida pela sempre imponente Margo Martindale, infelizmente pouco aproveitada) e seu irmão (papel pequeno, mas bem desempenhado por Steve Zahn). Assim como não é possível para Frank (ou para qualquer pessoa) deixar de ser quem é, não é possível ser quem é sozinho. Não ser é a morte, mesmo que vivo. Frank, Beth, Wally, eu, você: todos nós somos. Não há “ser ou não ser”, simplesmente somos quem somos.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.