“UMA NOITE EM HAIFA” – Fragmentar nem sempre funciona
Do ponto de vista estrutural, o que UMA NOITE EM HAIFA apresenta ao espectador é uma não trama, pois não há no longa uma história, mas uma narrativa no sentido mais amplo da palavra – e mais distante do modelo convencional. Sua proposta é estimular a reflexão de um contexto e de retratos, o que é traduzido em uma mise en scène irretocável, porém a fragmentação do roteiro reduz o potencial dessa reflexão.
É uma noite comum em Haifa, exceto para Gil e Laila, que têm a chance de crescer juntos na carreira se as fotografias dele fizerem sucesso na galeria dela. Mas também não é uma noite comum para Naama, meia-irmã de Gil, que precisa dele para desabafar sobre o próprio casamento. Tampouco para Hawla, Kamal, Bahira, Tom e vários outros. Talvez não exista uma noite comum.
Estão presentes em “Uma noite em Haifa” as características comuns da filmografia de Amos Gitai: estilo minimalista, não linearidade, elenco multiétnico e subtexto sociopolítico. O minimalismo está na filmagem e na estética. No primeiro caso, os cortes são em pouca quantidade e algumas vezes imperceptíveis, com a câmera atravessando o cenário em movimentos longos para acompanhar as personagens ou mesmo para mudar o objeto de filmagem (como quando sobe para o andar de cima do bar, para onde foram Gil e Laila, ainda nos minutos iniciais). No segundo, o cenário é pouco variado, praticamente limitado a um mesmo edifício onde estão o bar e a galeria, com eventuais sutilezas externas (por exemplo, a entrada de Kamal no bar, cena que demonstra traços claros de sua personalidade, e o ruído do trem externo ao bar, evidenciando que o local não é uma bolha alheia à realidade externa). É delicada, inclusive, a contraposição dos dois ambientes principais, a galeria e o bar: o claro versus o escuro, a prevalência de tons pastéis versus escurecidos. Existe ainda uma metalinguagem, de modo que a arte está nos dois ambientes (há cartazes de filmes no bar).
Há, porém, momentos que fogem ao minimalismo e que, não à toa, são inferiores aos demais, sobretudo a teatralidade final, em monólogos de Hawla (Khawla Ibraheem) e Laila (Maria Zreik). A despeito das boas atuações, a cena destoa muito do resto. A bem da verdade, nesse sentido, o tom da direção não converge por completo com o roteiro de Marie-Jose Sanselme. Mesmo sendo ela parceira de Gitai em outras obras, como “Um trem em Jerusalém” e “Rabin: the last day”, o exagero das frases de efeito – “nenhuma pergunta tem só uma resposta”, “ninguém tem o direito de negar o fardo da vida”, “tudo e nada pode ser dito sem dizer nada” etc. – dilui consideravelmente a naturalidade impressa pela direção. Estruturalmente, a dupla se mantém fiel à não linearidade, pois a sequência narrativa é diversas vezes passível de mudança (isto é, alguns acontecimentos ou diálogos poderiam ser adiantados ou atrasados sem prejuízo da experiência). Em visão micro, todavia, há diálogos muito antinaturais (mais estranha que a pergunta “o que você faria se fosse rei por um dia” é a resposta dada a ela).
Diante do subtexto político concernente ao conflito entre Israel e Palestina, as respectivas etnias estão no elenco. Além disso, o assunto é abordado de maneira imagética, nas fotografias de Gil (Tsahi Halevi) e, principalmente, textual, tanto na verbalização direta quanto nos relacionamentos representativos. As personagens, contudo, não vivem um arco, mas muitas vezes flashes sem grandes desenvolvimentos, como respiros (de alívio ou de tensão) em suas vidas. Tom (Tom Baum) e Fathi (Fayez Abu Haya) estão em um romance ao qual um deles, provavelmente em razão de suas crenças, é relutante; Naama (Naama Preis) aproveita a investida de Majd (Amir Khoury); Bahira (Bahira Ablassi) tem um discurso belicista e encontra um alvo perfeito.
O filme é então composto de retratos que nem sempre se comunicam e nem sempre se justificam, como a participação de Hana Laslo, em uma cena que nada acrescenta ao longa (salvo em sentido cômico, porém breve). O entrelaçamento entre o pessoal e o profissional em relação a Laila e Gil tem reflexos para outras personagens, como Roberta (Clara Khoury) e Kamal (Makram Khoury), quadrado que forma a linha argumentativa principal da obra. Porém, a fragmentação é tamanha que o foco concernente ao principal acaba sendo prejudicado, tornando alguns núcleos desinteressantes face a outros. Ou seja, o novo mosaico de Gitai funciona algumas vezes, mas não sempre.
* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.