“UMA LINDA MULHER” – Aquilo que o dinheiro não compra
Ao contrário do que pode parecer, UMA LINDA MULHER não é uma obra simplista que diz apenas que “dinheiro não traz felicidade”. Essa noção se faz presente, porém o filme problematiza a riqueza com um pensamento que admite que o dinheiro traz, isso sim, facilidade(s). A questão não é o dilema felicidade versus facilidade, mas aquilo que não é possível comprar com bens materiais, pensamento exposto na obra sem soar piegas.
Edward trabalha com vultosas quantias em compra, cisão e posterior venda de empresas. Perdido na Hollywood Boulevard e querendo voltar ao seu luxuoso hotel em Beverly Hills após um evento social, ele pede ajuda a Vivian, uma profissional do sexo que encontrou no local. É assim que começa uma história de amor.
Para não incorrer em anacronismos, é preciso encarar “Uma linda mulher” como fruto de uma transição entre as décadas de 1980 e 1990 (ano de seu lançamento), época em que a prostituição era (ainda mais) encarada como tabu. É isso que justifica, por exemplo, uma conversa em que os interlocutores sabem a natureza dos serviços prestados por Vivian, mas preferem simular a relação dela com Edward como de parentesco. Ainda assim, o filme não se preocupa em estabelecer profundos juízos de valor a esse respeito, pois o foco está no fato de que Vivian se prostitui por falta de opção. Não se trata de um olhar axiológico da profissão, mas o fato de ela ser o único caminho encontrado para subsistência.
A partir disso, nota-se que Vivian, personagem brilhantemente vivida por Julia Roberts, é uma personagem fascinante. Sua ingenuidade pueril conquista até mesmo o sisudo Barney; Roberts transmite esse traço de personalidade com gargalhadas deliciosas (como quando a personagem assiste a “I love Lucy” ou quando Edward fecha o case da joia) e uma leveza surpreendente quando se considera a história pregressa de Vivian. A atriz atenta a minúcias como o sotaque interiorano e, principalmente, o modo de pronunciar as palavras, que é com tom de voz alto e boca aberta. Assim, Roberts vai além do já perspicaz texto de J. F. Lawton, que coerentemente dá a Vivian um vocabulário muito distinto daquele de Edward.
Tanto Vivian quanto Edward dirigem suas trajetórias a partir do efeito pigmaleão, segundo o qual o desempenho individual é pautado pela expectativa alheia. Como em um “piloto automático”, o galanteador Edward (poucos galãs de Hollywood caberiam tão bem quanto Richard Gere para o papel) é um homem que não sabe o que é um dia de folga, ao passo que Vivian não enxerga em seu horizonte uma vida diferente da que já está vivendo. Segundo ela, “as pessoas te colocam para baixo e você começa a acreditar”, dado que “coisas ruins são mais fáceis de acreditar”. Sem dúvida, os dois vêm de universos distintos (o que é simbolizado, por exemplo, em seus conhecimentos sobre automóveis), fato que se reflete em comportamentos: ele chama o funcionário do hotel pelo sobrenome, ela, pelo prenome; ele prefere ler o jornal a tomar o café da manhã, ela, além de não se sentar à mesa (quando senta, é com um pé no assento), come sem usar um prato.
O que torna o romance cativante, contudo, é o modo como eles encontram convergências. Ao contrário do que se pode imaginar, o backstory de ambos, que surge organicamente em cenas fragmentadas pelo diretor Garry Marshall (na banheira, na cama…), é relativamente doloroso, o que os aproxima. A maneira como encaram os negócios é idêntica, o que igualmente cria uma identificação – ao menos, é claro, até perceberem que sua relação não é negocial.
Ainda mais interessante é a forma como ambos se transformam. Edward tem uma mudança comportamental e de mentalidade, redirecionando o próprio trabalho como construtivo; além disso, ele percebe um equívoco quanto às prioridades adotadas na vida. No caso de Vivian, inteligentemente o roteiro não cria grandes mudanças em termos de personalidade. É verdade que sua postura se modifica um pouco (quando se senta à mesa, passa a manter os pés abaixo do assento, cruzar as pernas e puxar o robe), mas seu jeito natural é mantido (como no grito assistindo a uma partida de polo ou ao compartilhar sua opinião sobre a ópera). A transformação de Vivian é encantadora porque meramente estética, compatibilizando-a para um mundo que vive de estética. Ou seja, o que lhe faltava era a aparência para um mundo que vive de aparências; a essência já lhe sobrava – e era esse o real interesse de Edward. Não que “Uma linda mulher” seja um ensaio profundo sobre a elitização, mas há momentos de crítica social pouco usuais em comédias românticas (sobretudo no modo como ela é tratada na loja).
A modificação pela qual Vivian passa, portanto, serve como catapulta para unir o casal, quiçá encurtando o caminho da sua conexão. Trata-se de uma aproximação simbólica ao conto da Cinderela no qual o roteiro se baseia (presente também em inúmeras outras obras), sem prejuízo de mostrar o quão banal e irrelevante é o novo visual. O ótimo design de produção, assim, é aproveitado para escancarar essa transformação imagética da protagonista, que passa a usar figurinos que mostram menos o seu corpo (quando comparados ao conjunto do começo, com regata curta branca e saia jeans curtíssima) e cores e acessórios mais discretos. A cor vermelha tem forte presença para traduzir o amor que surge progressivamente, contraposta ao ambiente acinzentado em que Edward trabalha.
No som, a icônica cena em que Vivian faz compras é embalada pela clássica “Oh pretty woman”, de Roy Orbison, que se tornou praticamente sinônimo do filme. Há outras escolhas muito boas, com destaque para “It must have been love” (Roxette), coerente com a época do longa, e “As quatro estações” (Vivaldi), coerente com o ambiente em que toca – o restaurante que se torna o primeiro (e engraçadíssimo) teste de etiqueta para Vivian.
O fato de a protagonista trabalhar como prostituta complexifica o relacionamento do casal e abre caminho para o subtexto. Sem cinismo, o filme reconhece que a vida se torna mais fácil com dinheiro. Entretanto, ele demonstra que o dinheiro não é capaz de comprar tudo. Contrariando as expectativas, Vivian aprende que ela não precisa se contentar com migalhas.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.