“UMA DOCE REVOLUÇÃO” – Narrativa eventualmente nem tão doce
A década de 1960 nos EUA pode ser adjetivada de diversas formas exceto como estagnada. O período foi marcado pelas tensões da Guerra Fria, pela chegada do homem a Lua, pela guerra do Vietnã, pelo movimento hippie e pela contracultura em geral, pelos assassinatos dos Kennedy e pelos movimentos de direitos civis. Este último ponto especificamente é o tema de UMA DOCE REVOLUÇÃO, trabalho de estreia de S.E. DeRose como diretora, produtora e roteirista, ao abordar a luta por cidadania da população negra e das mulheres. As duas dimensões parecer ter a mesma importância narrativa, mas a execução dramática e estética prioriza um desses elementos em detrimento do outro.
Tendo como ambientação o início dos anos 1960, a trajetória de Grace Gordon ocupa o centro da trama. Ela é uma mulher divorciada que retorna à sua cidade natal após a morte do pai para descobrir que a família está repleta de dívidas e falida. Ao tentar pegar um empréstimo no banco, é informada que essa opção é permitida apenas aos homens. Simultaneamente, o movimento negro se articula para pressionar o Congresso a votar pelo fim da segregação racial, ocorrendo em um contexto de ebulição social e violência de um sistema racista. Decidida a conquistar sua independência financeira, Grace consegue a ajuda do congressista Worth para incluir as mulheres na legislação dos direitos civis.
S.E. DeRose apresenta seu filme a partir da dinâmica de um cenário específico: a casa do pai da protagonista, onde seu velório é feito com direito a convidados, à volta da filha à cidade de origem e o trabalho ainda maior dos funcionários diante de um local tão movimentado. Nas relações que se estabelecem, a realizadora define uma ambientação marcada pelo preconceito implícito às pessoas negras, já que todos os trabalhadores (cozinheiras, motoristas, garçons, funcionários da limpeza…) são negros e devem servir convidados brancos. Da mesma maneira, a sequência evidencia o machismo em relação à protagonista, uma vez que escuta comentários pejorativos disfarçados de brincadeiras sobre seu divórcio e suas eventuais “aventuras” românticas. Porém, a encenação se baseia em uma abordagem tão sutil que a discussão social sobre discriminação e violência simbólica não parece fazer parte do princípio geral da história ou que os assuntos a serem trabalhados não teriam uma densidade tão grande. A exceção fica por conta da cena em que Grace comenta com uma das funcionárias da residência que ela seria vista como uma divorciada de meia-idade inútil pelos homens brancos detentores do poder.
Embora o principal conflito dramático em torno do arco de Grace seja inserido com potencial para despertar mudanças interessantes, os desdobramentos ficam aquém das possibilidades. O machismo da época que a impede de pegar um empréstimo para aliviar a situação financeira deficitária da família exige que busque uma saída para conseguir o dinheiro que precisa. Então, o que poderia ser o elemento disparador para debates sociais complexos, torna-se um recurso de roteiro enfraquecido por duas razões. Primeiramente, a resolução do obstáculo é tentada no âmbito de um sistema patriarcal, no qual a administração do dinheiro caberia apenas aos homens, pois Grace decide se encontrar com pretendentes ricos que poderiam saldar as dívidas caso se transformassem um casal – uma decisão contraditória considerando seu objetivo de conquistar maior independência, que também aparece no seu diálogo com Jubilee no qual menospreza o desejo da funcionária de não depender de homens. Além disso, os encontros são desenvolvidos sob a chave da comédia (inclusive com o humor físico de um homem se engasgando com a refeição) e a atuação de Anna Friel se adequa a esse gênero cinematográfico, algo que aliena o poder social das questões levantadas.
Por outro lado, o núcleo narrativo em torno dos personagens negros é apresentado e desenvolvido com decisões mais complexas do ponto de vista dramático e visual. Ao redor de um bar, temas poderosos são invocados a partir das divergências entre Andrew e Walter: o esforço de convencer outras pessoas negras a participarem da luta pelos direitos civis, a acusação de ser comunista sobre quem defendesse a igualdade entre todos os cidadãos, as diferenças entre as matizes da cor de pele (utilizadas por alguns para negar a negritude de alguns indivíduos) e a necessidade de se satisfazer com realizações materiais do país (nem sempre disponíveis para toda a população). Os atritos entre eles são potencializados pelo modo como Curtis Hamilton dá a Andrew a convicção de sua luta apesar do percurso complicado que tem à frente e como Aml Ameen faz Walter ser multifacetado por trabalhar para Worth, ser acusado de sempre defender um político branco e, gradualmente, questionar-se sobre determinadas concepções que possuía. Deve-se dizer também que a conjuntura era desfavorável para os negros, como fica patente na movimentação de um grupo de homens brancos racistas e violentos dispostos a atacar aqueles que julgam inferiores, e nas falas de Worth sobre a necessidade de manter a sociedade como está, desigual, segregadora, racista, machista e capitalista.
Os debates sociais crescem quando o núcleo ao redor dos personagens negros reassumem o centro narrativo e construções estéticas mais expressivas são feitas. Existe um tom de ironia desencadeado pelo contraste entre imagem e fala no momento em que Worth aponta para fora do carro dirigido por Walter e diz que Deus forneceu grandes belezas aos EUA, sendo que a paisagem em questão era uma plantação de algodão, conhecida por historicamente servir de campo de trabalho para os africanos escravizados e seus descendentes igualmente oprimidos; e um subtexto provocador nos momentos em que Walter interage com Jubilee na cozinha da casa de Grace, fazendo insinuações sexuais a partir das refeições que faz ali que são prontamente interrompidas pela mulher. Dramaticamente, Jubilee e Viola são figuras importantes para ressaltar algumas contradições dos movimentos sociais à época, sobretudo como a luta por igualdade racial nem sempre considerava a igualdade de gênero. Nesse sentido, Pauline Dyer e Jill Marie Jones interpretam mulheres que reafirmam sua autonomia e buscam escrever suas histórias, tendo destaque a sequência em que Viola questiona o fato de a conquista dos direitos civis dos negros não significar necessariamente o mesmo para as negras (ela faz um trocadilho com as leis segregacionistas Jim Crown que deveriam acabar, citando que as leis Jane Crown deveriam também ser abolidas).
Tratar a questão feminina no contexto de busca por direitos civis é o elemento que faz o arco de Grace encontrar rumos mais consistentes. Pausando a procura por algum pretendente rico, ela tenta ser contratada para algum emprego e vivencia diferentes situações que mostram o lugar marginalizado a que as mulheres são submetidas: o baixo salário oferecido, os abusos cometidos em uma “entrevista de trabalho”, a sujeição à prostituição de algumas mulheres como estratégia de sobrevivência, as dificuldades para a criação dos filhos, as agressões físicas sofridas. Gradualmente, a protagonista toma consciência de uma realidade que ultrapassa sua existência individual e atinge outras mulheres, além de também reconhecer formas de preconceito ligadas à cor da pele e à renda. É bem verdade que o humor ainda está presente, porém nem sempre deslocado como já havia acontecido anteriormente e, por vezes, integrado à narrativa. Então, a piada sobre a recepção dada por algumas crianças a Grace quando vendia produtos de beleza pode não funcionar e sobre suas roupas luxuosas em ocasiões incompatíveis pode funcionar esporadicamente, mas a dinâmica estabelecida com um grupo de prostitutas rendem resultados convincentes como alívio cômico e como demonstração de sororidade.
“Uma doce revolução” é bem realizado do ponto de vista técnico e apresenta uma coesão estilística com relação às decisões tomadas, embora não tenham um apelo sensorial imediato. Outro ponto mais sensível é o desenvolvimento narrativo de determinados personagens e do conflito dramático em si. A transformação de Grace pode estar bem integrada ao seu arco e a progressão da trama, porém isso não acontece com Worth e Walter. O congressista abandona rapidamente seu discurso elitista e conservador para abraçar com unhas e dentes uma postura progressista de inclusão social e ampliação da cidadania, enquanto o motorista interrompe sua conscientização em relação às lutas representadas por Andrew para se colocar contrário à conquista de direitos pelas mulheres (especialmente, porque sua evolução narrativa caminhava para outra direção). Já quanto à conclusão do conflito em torno do conservadorismo de uma sociedade segregacionista e composta por grupos avessos à Lei dos Direitos Civis, um desfecho conciliador que não trabalha as tensões ainda existentes após a mudança da legislação é ingênuo e problemático. Com isso, a premissa centrada na população negra e nas mulheres na década de 1960 nos EUA tem desenvolvimentos e conclusões que não se harmonizam tão constantemente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.