“UM HERÓI” – A moralidade ambígua de um relato
UM HERÓI pode começar sutil e simples, quase como uma crônica sobre o cotidiano comum da sociedade iraniana. Em sua premissa inicial, um homem preso tenta recuperar sua liberdade através do pagamento de uma dívida que o levou a essa condição. Em seu desenvolvimento, a narrativa ultrapassa qualquer impressão de simplicidade dramática e se torna um exemplo da complexidade moral dos “pequenos incidentes” do dia a dia e da ambiguidade da circulação pública de um relato.
O homem que não conseguiu pagar sua dívida e, por isso, está preso se chama Rahim. Ele aproveita o benefício de uma saída temporária para negociar a retirada da queixa do credor mediante o pagamento de uma parte do valor. Porém, a negociação não sai como o planejado e ele se vê tentado a aceitar a oportunidade oferecida por sua namorada, Farkhondeh para deixar a prisão. Embora este plano pareça oferecer outra saída para mudar a imagem do sujeito e devolver-lhe a liberdade, seus desdobramentos podem colocá-lo sob outros riscos e afetar todas as pessoas que o cercam independentemente do que é verdade ou mentira de seus atos e falas.
Na filmografia do cineasta Asghar Farhadi, a evolução de um fato aparentemente corriqueiro do cotidiano para conflitos morais de difícil resolução e avessos a qualquer tipo de maniqueísmo é um traço recorrente. Por exemplo, em “A separação“, um pedido de divórcio impulsiona discussões mais amplas sobre honra, religião, individualismo e o papel da mulher em diferentes sociedades. Já em “O passado“, outro pedido de divórcio desencadeia questões intrincadas a respeito do peso do passado no presente e da revelação de segredos conturbados na dinâmica familiar. Em seu mais recente projeto, o diretor aborda a tênue linha que pode separar as dimensões de verdade, mentira, invenção, realidade, fraude e sinceridade de um relato e da exposição pública do enunciador dessa narração. Tudo isso emerge da imagem pública que o protagonista passa a ter ao agir de maneira íntegra sem, aparentemente, pensar apenas em si mesmo.
Ações espontâneas ou fabricadas, relato verdadeiro ou distorcido e construção consciente ou inconsciente de uma imagem pública convergem quando a trama desenvolve a premissa inicial. A sugestão de Farkhondeh era Rahim usar algumas moedas de ouro achadas dentro de um bolsa na rua para pagar parte da dívida, mas, como Bahram não aceita a renegociação, o protagonista decide procurar a dona daqueles pertences dando o número de telefone da delegacia onde está preso como contato. A partir daí, boa parte da sociedade considera o prisioneiro um herói por conta de uma atitude altruísta, que deve receber homenagens e auxílios para saldar a dívida; enquanto seu credor se opõe a essa caracterização por afirmar que alguns fatos não foram exatamente assim e acreditar que a devolução da bolsa seria mera obrigação moral. E o trabalho de composição de Rahim feito por Amir Jadidi conduz o espectador a, inicialmente, ficar do lado do personagem: um homem comum que não parece ambicioso nem ardiloso, interpretado com a postura arqueada, a voz grave, as emoções contidas e o olhar baixo.
Conforme a narrativa progride e a história da bolsa perdida toma outros rumos, as certezas inabaláveis sobre Rahim se enfraquecem. Alguns detalhes do próprio indivíduo colocam dúvidas a respeito de sua personalidade e de seus interesses ao longo de suas tentativas de recuperar a liberdade, não a ponto de cometer algum crime, mas de relativizar sua postura ética. Por que ceder o número da delegacia e não de algum parente para o dono da bolsa entrar em contato? Por que faz tanta questão de procurar emprego durante sua licença temporária carregando o diploma de mérito que recebeu de uma instituição de caridade? Por que leva seu filho gago a todos os lugares como se pretendesse comover todos ao seu redor? E por que demonstra tanta satisfação quando é reconhecido por alguém na rua? Tais questões aparecem gradativamente como contradições em um sujeito até então tão abnegado e despreocupado com a imagem pública que teria. Da mesma forma, alguns rompantes emocionais que o levam a se descontrolar e a atacar algumas pessoas fornecem outras nuances dramáticas, principalmente nas situações em que suas expectativas são frustradas.
Simultaneamente ao aparecimento de contradições nas características do protagonista, as incongruências de seu relato também se manifestam. Com todos os holofotes voltados para suas tentativas de pagar a dívida, Rahim acaba sendo surpreendido por reviravoltas na história da devolução da bolsa e os demais personagens se deparam com incongruências na narrativa da mulher que perdeu moedas de ouro. As lacunas e as incoerências levam Rahim a tentar preservar sua versão dos fatos, caminhando por uma zona nebulosa entre o que é mentira, verdade, omissão, falsificação e manipulação através de ações duvidosas em termos morais. E as complicações se intensificam quando o emaranhado de relações e eventos geram consequências para seus familiares, para os delegados, para uma instituição de caridade, para o credor e para a família de outro preso. Passeando por um mosaico de figuras diversas, Asghar Farhadi trata todas elas com a multidimensionalidade que possuem ao mostrar seus pontos de vista sem maniqueísmos, em especial Bahram.
A complexidade moral da narrativa é potencializada pela abordagem estilística do diretor, já evidenciada em seus trabalhos anteriores a partir da combinação entre decupagem realista e visão universalista dos conflitos dramáticos. Por mais que seus filmes pareçam dar atenção maior ao roteiro, Asghar Farhadi não menospreza a construção visual já que parte de uma trama ancorada na sociedade iraniana para tratar de situações que podem extrapolar àquela realidade específica e gerar identificação em diferentes públicos. Isso porque o cineasta utiliza várias estratégias para evocar uma sensação de realismo e de proximidade em relação aos personagens, como já é perceptível nas primeiras sequências em que a câmera segue Rahim caminhando até os andaimes de uma construção e subindo por eles até encontrar o cunhado. Em outros momento, o padrão estético passa por leves alterações, mas mantendo a ideia de enfocar os conflitos a partir de um estilo de filmagem muito próximo aos personagens.
Diante da sensação crescente de proximidade em relação a esse universo, os espectadores podem questionar as atitudes de todos os personagens tentando dar uma resposta coerente às dúvidas que se abrem. No entanto, “Um herói” não se presta a dar uma lição de moral fechada e definitiva sobre tudo o que aconteceu, pois prefere deixar propositalmente interrogações sobre propósitos, desejos e interesses. As lacunas de explicações atingem Rahim, principalmente se o homem imaginava e calculava que a devolução da bolsa poderia gerar uma repercussão positiva para sua imagem ou não teria noção do alcance de seu relato livremente verdadeiro. O impasse moral de suas ações e de seus desdobramentos é tão complexo quanto o simbólico plano estático final, outra marca recorrente da filmografia do diretor. Nele, o quadro pode ser dividido sutilmente em duas dimensões muito próximas, uma de liberdade e outra de confinamento.
Um resultado de todos os filmes que já viu.