“UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK” – A fragilidade masculina
Se autor e obra se confundem até mesmo no cinema, que é produto de um coletivo, Woody Allen tem em UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK um jovem alter-ego perdido, ao passo que as mulheres que o rodeiam são as que fazem tudo acontecer. No longa, quiçá também na vida, a masculinidade é extremamente frágil.
Na trama, Ashleigh e Gatsby são felizes namorados que planejam uma viagem romântica a Nova Iorque. Os planos do casal precisam se reajustar em razão de uma oportunidade única que ela, estudante de jornalismo, recebe: entrevistar seu ídolo, o renomado cineasta Roland Pollard. Ele, enquanto anda pelas ruas de Manhattan, encontra Chan, a irmã mais nova de sua antiga namorada. A vida de Ashleigh e Gatsby, assim, ganha novas possibilidades.
O roteiro de Woody Allen se apoia completamente em coincidências para formar a narrativa, o que exige suspensão da descrença quanto a isso. As coincidências posteriores ao incidente incitante (a ex-namorada de Roland, os tios de Gatsby, a chegada de Tiffany etc.), assim, são meros desdobramentos de um texto pensado dessa forma. Ainda em termos narrativos, Gatsby e Ashleigh têm trajetórias muito similares em Nova Iorque (a diferença é o que extraem disso): um beijo, um(ns) drinque(s), uma festa, frustrações (ela com Francisco, ele com Terry) etc.. Passado, presente e futuro parecem prestes a se fundir para ambos: os filmes de Roland fazem parte de boas memórias de Ashleigh; Chan faz parte de uma vida pretérita de Gatsby; nos dois casos, parece brotar algum romance para o futuro.
A intensa subjetividade mental de Gatsby, presente através de narração voice over, fornece nos minutos iniciais os três pilares da sua vida pessoal: a preferência da jogatina a uma profissão tradicional, a influência da mãe para que tenha uma “vida apropriada” e a namorada por quem é “perdidamente apaixonado”. De todo modo, Gatsby é alguém extremamente vulnerável. Por exemplo, um conhecido que nem é seu amigo consegue deixá-lo inseguro quanto à fidelidade da namorada (existem outros fatores reforçando a insegurança, mas o pontapé inicial é dado por esse terceiro) e a ideia de envelhecimento é para ele assustadora (os mais velhos “são uns decrépitos”, nas suas palavras). Quase tão assustadora quanto uma possível avaliação de seu beijo pela irmã de Chan.
Enquanto Ashleigh age para dar suporte emocional a Roland (Liev Schreiber, esbanjando talento em fragmentos de cenas, como ao emular uma voz grave em razão da embriaguez da personagem, outro homem deveras vulnerável), Gatsby fica inerte em tudo que o rodeia. Mesmo quando ele reencontra Chan, está agindo no “piloto automático” – aliás, a piada sobre o tempo voar de classe econômica é soberba. A loira pode esquecer o próprio nome quando encontra um ator famoso, mas é ele que pergunta para ela se o fato de ser quem é tem significado positivo ou negativo (ao invés de responder afirmativa e orgulhosamente de imediato).
As mulheres se afirmam em tudo (como a própria mãe de Gatsby), diversamente dos homens, que só conseguem se afirmar se houver um reforço feminino. Isso vale para os jovens, mas também para os maduros: Roland, Ted e Francisco enxergam em Ashleigh uma muleta, cada um deles imputando nela o objeto que supre as suas necessidades; Hunter tem problemas sexuais por algo em Lily que o próprio irmão acha ser problema dele (e não dela). Gatsby não fica imune a essa fragilidade, muito pelo contrário. Sufocado pela mãe, o jovem, interpretado pelo magnífico Timothée Chalamet (além de encarnar, novamente com solidez, um protagonista complexo, dessa vez tem seu momento Chet Baker com “Everything happens to me”), precisa ter ao seu lado alguém que tenha o que ele não tem.
Isso porque a Ashleigh da espontânea Elle Fanning está encaminhada na sua área, trabalha no jornal da escola e, mesmo deslumbrada com a realidade que vai conhecendo, não esquece por completo a profissão. Com um perfil bem diferente, a Chan da excelente Selena Gomez (uma das melhores do gabaritado elenco) também está profissionalmente encaminhada e não se revela hesitante em momento algum. Se a loira pode ter sido impulsionada pelo álcool (Diego Luna tem em Francisco um homem cuja sordidez é revelada aos poucos), a morena mantém consigo as rédeas da própria situação. É com Chan que Gatsby tem os melhores diálogos, quase um duelo em que ele tenta escapar das suas cutucadas, geralmente levando a pior. Mesmo quando ele a chama, indiretamente, de cascavel, não muito depois é com ela que ele desabafa. A fraqueza do protagonista sobre si é tão grande que é na “menininha insolente” onde ele encontra abrigo. Mas Chan não é como Ashleigh: enquanto uma usa verde para demonstrar sua tranquilidade, a agressividade da outra está no tom escarlate do vestuário.
Nova Iorque é mais uma vez exibida por Allen de maneira romântica e luxuosa (é esse, afinal, o seu recorte costumeiro). Com a chuva, algo bem representativo da cidade, mudam os rumos da vida das personagens. O que não muda é a fragilidade masculina.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.