“UM DAQUELES DIAS EM QUE HEMME MORRE” – Comédia de urgência [48 MICSP]
A ideia que há por trás de UM DAQUELES DIAS EM QUE HEMME MORRE é que, na vida, todas as pessoas se sentem sujeitas às mais diversas complicações, por vezes como se conspirassem contra si, mas que precisam ser aceitas e encaradas com serenidade. Surpreendentemente, um suspense dá lugar a uma comédia de urgência.
Eyüp saiu de Izmir para trabalhar em uma plantação de tomates em uma região campestre da Turquia. Sua intenção é que o salário lhe permita pagar suas dívidas. Porém, as condições de labor são duras e, para piorar, ele está há quinze dias sem receber o pagamento. Depois de discutir violentamente com Hemme, seu supervisor, Eyüp decide tomar uma medida radical contra ele.
O diretor e roteirista Murat Firatoglu apresenta, sob o invólucro de um suspense, uma comédia que, na verdade, é anunciada na cena inicial, dada a sua brandura. Com humor verbal pontual (como quando o tio fala sobre um clássico literário errando seu nome), a pujança cômica está nas situações encaradas por Eyüp após decidir enfrentar Hemme. O roteiro de Firatoglu parte de uma crítica às condições de trabalho no campo, mas ganha contornos cômicos – mesmo que não hilários – depois do incidente incitante no qual o protagonista toma a referida decisão.
No caso do trabalho do campo, a estética exerce função essencial. A direção é naturalista, de modo que inexistem músicas extradiegéticas e os ruídos intradiegéticos transmitem a atmosfera desértica da região (o ruído do vento soprando, o zumbido do mosquito etc.). É na fotografia, todavia, que o longa se destaca, irradiando uma sensação sufocante de calor. Para isso, há farta presença das cores vermelha, como nos tomates – na verdade, em quase todas as cenas há um elemento vermelho, como a cadeira de plástico do homem sentado próximo à lenha e o tapete lavado pela esposa de Eyüp, além da motocicleta do protagonista -, e amarela, como no pasto seco da região e as paredes de tons arenosos na cidade. Esse conjunto gráfico exala e eleva a sensação de calor (o vermelho, especificamente, soa como um prenúncio de violência), extraída também das próprias cenas, notadamente o trabalho braçal exercido pelos funcionários de Hemme sob o sol escaldante.
A fotografia de cores quentes auxilia também para estimular no espectador a percepção da urgência do ritmo do filme, que é quebrada em pequenos fragmentos resultantes das interrupções com que Eyüp se depara. A partir do incidente incitante, sua vida se torna uma verdadeira correria que, apesar disso, é constantemente paralisada por fatos alheios à sua vontade. O roteiro demonstra, pois, como todas as pessoas estão sujeitas às vicissitudes de diversas espécies, e que essas mesmas vicissitudes podem amenizar intenções catapultadas pela raiva. Quanto maior a urgência sentida por Eyüp, mais ele encontra pessoas que atrapalham o seu intento original, como se tudo conspirasse para que seu objetivo não se concretizasse. Se há uma conspiração, entretanto, é para corroborar com a própria personalidade da personagem principal, uma vez que ele se revela um homem bondoso (basta ver como age com o “tio”) com um backstory trágico (revelado no diálogo com Mevlüde). Seu atrito com Hemme é fruto de uma indignação legítima sobre as condições de trabalho; sua reação é resultante de um insulto. Eyüp é como qualquer pessoa, alguém propenso a sentir raiva quando provocado e tomar uma decisão precipitada no calor do momento.
Nos minutos finais, (spoilers a seguir) “Um daqueles dias em que Hemme morre” tem uma cena aparentemente inócua, mas cujo simbolismo enriquece o longa. A lata chutada pelas crianças – não à toa, uma lata vermelha – enquanto Eyüp observa faz com que ele se sinta como a própria lata, alguém levado de um lado a outro por outras pessoas, quase como se fosse um objeto. Sua reflexão vai além, pois ele percebe o quão sujeito às vicissitudes ele está. É naquele momento, contudo, que ele percebe que tudo o que viveu durante aquele dia lhe permitiu mudar de ideia. Com maior tranquilidade, ele pôde perceber que sua reação era desmedida.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.