“TUDO O QUE VOCÊ PODIA SER” – Grupo em afeto
“Tudo o que você podia ser” é uma canção do Clube da Esquina, conhecida na voz de Milton Nascimento. Lançada nos anos 1970, é interpretada como um lamento pelo medo causado pela violência da ditadura civil-militar que dificulta os sonhos revolucionários, embora alguma dose de otimismo ainda seja sentida ao longo dos versos. TUDO O QUE VOCÊ PODIA SER é um filme que assimila a música para atualizar a postura otimista em meio às adversidades de uma conjuntura atual marcada pela afirmação de novas identidades de gênero.
Centrando sua trama em um dia, a obra acompanha as últimas horas de Aisha em Belo Horizonte. Ela está de partida para realizar o sonho de fazer um curso universitário em outro estado, por isso pretende desfrutar do tempo que ainda tem com Bramma, Igui e Will. Todas são pessoas trans e não binárias que encontram carinho, amor e acolhida em suas amizades, mesmo que suas vidas tenham duros obstáculos a enfrentar. Nessas vinte e quatro horas, as personagens dividem risos, lágrimas, confissões e encontros até o por do sol.
Apesar de não fazer parte da Filmes de Plástico, existem semelhanças muito significativas entre os filmes da produtora mineira e o trabalho de Ricardo Alves Junior. O diretor não se preocupa em definir uma trama convencional que possa demarcar claramente eventos e atos no roteiro. O interesse maior está em acompanhar as relações das personagens e seus movimentos pela capital de Minas Gerais, explorando a simplicidade de um cotidiano comum que apenas parece, de forma apressada, pouco atraente. Ao mesmo tempo, a mise-en-scène fortalece tanto as interações de Aisha, Igui, Bramma e Will quanto a proposta geral de um naturalismo cênico. Como as identidades das personagens são fluidas, a narrativa alterna entre características de documentário e ficção ao movimentar a câmera de modo espontâneo em sequências externas e criar momentos de encenação mais evidente.
O diretor também opera com desenvoltura as cenas em que as amigas interagem em duplas, criando um senso de coletividade que cresce gradualmente. Esses encontros não são motivados por situações fora do comum ou grandiosas, pois bastam os episódios do dia a dia facilmente compartilháveis com o público. Aisha e Will se lembram de experiências amorosas enquanto fumam e arrumam roupas para doação. Igui e Bramma organizam as bebidas e os alimentos para uma reunião no início da noite. Aisha e Bramma se divertem tomando banho de mangueira no quintal de casa. Outras sequências assim se somam e apresentam um universo queer sem estereótipos, que constrói intimidades e sentimentos através dos pequenos gestos de um toque, de uma conversa ou de um olhar. Ricardo Alves Junior convida o público a fazer parte daquele mundo diegético tão íntimo a partir de enquadramentos que ora se aproximam do elenco como forma de identificação ora se afastam como estratégia de respeito à sua privacidade.
Em outros instantes, a narrativa deixa de abordar a coletividade entre pessoas não binárias para enfocar suas individualidades específicas. Nesse ponto, os resultados são díspares. A abertura mostra uma visita de Aisha à família de seu irmão, uma demonstração de ternura comovente quando os preconceitos não estão presentes. Igui e Will sofrem da mesma falta de aprofundamento de seus arcos, já que pouco é desenvolvido para além, respectivamente da aprovação de um curso de doutorado na Alemanha e das dificuldades financeiras decorrentes da perda de trabalho. E Bramma é quem mais se vê afetada pela discriminação e pela violência transfóbica nas sequências com a mãe e com estranhos dentro do ônibus. Os dois momentos são carregados de uma ficcionalização que se choca com a espontaneidade até então vista, pois dependem de diálogos menos naturalistas e da estilização de uma fotografia soturna. Além disso, o filme quase divaga para outro recorte que não fazia parte de suas escolhas narrativas.
Levando em consideração a maior parte da produção, a ideia não é tratar do preconceito, da brutalidade dos intolerantes, dos efeitos traumáticos da violência de gênero ou da luta política militante por direitos. A proposta é pensar em como os afetos criam laços de solidariedade, respeito, proteção, amor, carinho e sobrevivência em pessoas que são marginalizadas por uma sociedade discriminatória e violenta. Então, o diretor praticamente constrói um universo à parte para suas personagens, lembrado, invariavelmente, de que em seu exterior uma mãe pode não acolher o próprio filho, ofensas podem acontecer em qualquer situação e gestos de amor podem ser repudiados. No entanto, a câmera somente capta esses elementos e não se debruça sobre eles, pois a prioridade é aproveitar os melhores momentos partilhados por uma coletividade não hegemônica. Assim, um pedido de abraço, um jogo de verdade e consequência, a preparação para a saída para uma festa e um lanche na rua proporcionam grandes emoções coletivas.
“Tudo o que você podia ser” pode, eventualmente, ser criticado por recursos clichês em seu desfecho: a personagem debruçada para fora de um carro para evidenciar a sensação de liberdade, as quatro amigas abraçadas com o por do sol à frente para demonstrar a beleza daquelas relações e o uso da canção nos créditos finais para justificar o título. Porém, as cenas atingem o efeito desejado por mais convencionais que sejam. Isso acontece graças à vitalidade das atuações de Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares e às escolhas criativas de Ricardo Alves Junior em direção à ideia de afeto como congregação sensível. As emoções, os amores e o coletivismo podem, portanto, ser heróis das estradas, falar na bota e no anel de Zapata e ser tudo que devia ser.
Um resultado de todos os filmes que já viu.