“TIPOS DE GENTILEZA” – Com os excessos, mas sem os excessos dos excessos
Comparado a “A favorita” e “Pobres criaturas”, TIPOS DE GENTILEZA é um filme menor do mesmo realizador. As características mais essenciais da sua filmografia estão presentes, porém em doses homeopáticas. O filme serve de mostra, assim, de que o cineasta consegue se livrar dos excessos de seus excessos, mas não do excesso em si.
O filme é concebido como uma antologia de três média-metragens. Na primeira história, Robert é um homem comum que tenta se libertar das imposições de Raymond. Na segunda, Daniel é um policial que desconfia do comportamento de Liz, sua esposa, que reaparece após um acidente que os afastou. Na terceira, Emily está à procura de uma pessoa que, segundo seu líder Omi, possui habilidades únicas.
Existe um padrão temático entre as três histórias, pautado em três ideias. A primeira se refere aos relacionamentos afetivos (não necessariamente românticos), que são sempre disfuncionais ou mesmo perniciosos. A segunda é a onipresença da morte, que, contrariando as conclusões mais óbvias, nem sempre é ruim (a morte como prova de amor, como revelação da verdade e como meio de alcance para o sobrenatural). A terceira é a mentira, curiosamente associada aos pés (o forjar de uma lesão, o tamanho em relação aos sapatos, uma torção que não ocorreu). Quando mescladas, essas ideias conduzem à conclusão de que, na ótica do filme, os relacionamentos afetivos são ambivalentes, podendo levar a alegrias sinistras, a prazeres carnais e a invenções oportunistas.
Poucos cineastas da atualidade conseguem convergir o conteúdo de um filme com a linguagem cinematográfica tão bem quanto Yorgos Lanthimos. No design de produção, os cenários pontuam o abismo entre as histórias: fechados e elegantes, depois modestos e claustrofóbicos, posteriormente abertos e paradisíacos. As cores marcam forte presença – não tão forte quanto nos dois últimos filmes do cineasta -, seja no figurino (o preto da blusa de Robert simbolizando o luto pelo resultado da iminente conversa, as roupas em tom mostarda de Daniel traduzindo o engano da situação), seja nos elementos cinematográficos (o carro roxo de Emily representando a morte, o suco com vermelho intenso que Robert bebe exprimindo o amor e a violência). O vestuário vai além das cores, simbolizando, por exemplo, na primeira história, a liberdade buscada por Robert (seu cacharrel apertado é substituído por roupas mais largas à medida que se liberta de Raymond). O mesmo ocorre nos cenários: os tons amadeirados da segunda história contrastam com a claridade daqueles da primeira.
Lanthimos faz da obra, como de costume, um híbrido que vai do humor negro à tragédia. Há muito suspense, embalado pela trilha instrumental baseada no piano e que, geralmente, recai em uma morbidez censurável em condições normais. Seus dois últimos filmes contaram com outros roteiristas; dessa vez, ele retorna aos trabalhos menos hollywoodianos – e menos espalhafatosos -, retomando a parceria no roteiro com Efthimis Filippou. Assim, é mantida a sexualidade pulsante (como sugestão na primeira história, como potência na segunda, e como prática na terceira), contudo perde-se o receio em ser controverso na medida em que a violência, de mais de um tipo, é normalizada. “Tipos de gentileza” é por vezes um filme de terror, como quando Daniel surge na contraluz e diz para Liz que está com fome, aliado ao gore. Porém, não deixa de ser também uma comédia. Seu humor é ácido, por exemplo quando Vivian (Margaret Qualley) canta “How deep is your love”, uma opção sarcástica. Mas há também insights provocativos, por exemplo quando Aka (Hong Chau) joga um líquido da panela após afirmar estar menstruada.
Quase infantilmente, Lanthimos brinca com nomes (Robert, Rita e Raymond; Daniel Daniels; H-O-H) e com o fato de contar com um elenco que se repete em papéis (e caracterizações) distintos(as). Coadjuvantes como Mamoudou Athie e Willem Dafoe são ótimos para dar solidez ao brilho dos protagonistas, de modo que Emma Stone e Jesse Plemons são nada menos que deslumbrantes em suas personagens. Stone tem maior espaço a partir da segunda história, tornando Liz convincente em sua dubiedade, e estimulando empatia com o desespero de Emily. Plemons, pelo contrário, tem maior espaço nas duas primeiras. Como Daniel (segunda história), o ator amalgama o insano e o raivoso. Como Robert (primeira), a palpável expressão de pavor colide magistralmente com o fingimento de fragilidade posterior, reforçando o quão soberbo Plemons consegue ser.
“Tipos de gentileza” é mais um filme em que Lanthimos usa o exagero como ferramenta simbólica. Uma relação tóxica não tem manipulações banais, mas vai ao extremo do que se pode imaginar. O absurdo pode ser tão cômico (Raymond ordenando a Robert que recomece o diálogo, como se encenassem) quanto obsceno (a língua para, supostamente, medir a contaminação). A estranheza é metalinguística: o comportamento de Daniel é repulsivo para o espectador, mas também o é para aqueles que o cercam. Seria tudo um sonho, como sugere o diretor ao iniciar o longa com “Sweet dreams”? O onírico, de fato, pode explicar a falta de logicidade da(s) obra(s) de Lanthimos. O que importa, de todo modo, é que esse é mais um filme de excessos como todos os outros de sua filmografia. Ainda que, por exemplo, o uso de lente grande-angular seja reduzido (comparativamente aos dois filmes anteriores), ou que a paleta de cores chame menor atenção, os excessos não estão ausentes. Pelo contrário, eles estão lá, apenas em menor proporção.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.