“TINTA BRUTA” – O desabrochar da existência
“O ser humano é um ser social“. A frase anterior, em várias ocasiões, é tratada como uma verdade pronta e acabada, que independeria de construção social. Não à toa, indivíduos deslocados socialmente e ainda à procura de autoaceitação e de vínculos emocionais convivam tão intensamente com as dores de não se encaixarem no mundo – justamente por se sentirem fora de um rumo, aparentemente, tão claro e certo. Pedro, o protagonista de TINTA BRUTA, percorre esse difícil caminho de deixar de ser uma ilha em si mesmo para se integrar à vastidão do mundo à sua volta.
Ele é um jovem órfão que precisa lidar com um processo criminal causado por um incidente na faculdade e com a partida da irmã para outro estado (única pessoa com quem tem uma boa relação). Sob o codinome GarotoNeon, realiza performances eróticas, pintando seu corpo com cores em neon, em frente à tela do computador de seu quarto para milhares de anônimos na internet. Sua vivência por tanto tempo na realidade virtual é diferenciada visualmente pelos diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon: as apresentações são transmitidas em uma imagem granulada dentro do formato de uma tela de computador ou de uma sala de bate papo online.
Ter diversas visualizações na internet não torna Pedro alguém que consiga se relacionar bem socialmente. Sua vida gira em torno dos shows, portanto pouco sai de seu apartamento – e quando o faz é por exigência da irmã, que pede para ele sair, ao menos, por cinco minutos (algo que cumpre mediante a contabilização do tempo por um cronômetro que leva junto de si). Ele apenas tem uma boa relação com a irmã, a única pessoa com quem tem um contato físico, trocando beijos e abraços, e que consegue fazê-lo sorrir. O retraimento, a timidez e o desconforto social de sua personalidade aparecem nos planos de apresentação do personagem: é mostrado de costas, com olhar caído e braços muito próximos ao corpo ou com o cabelo cacheado cobrindo o rosto.
Nas performances, sente-se mais à vontade por estar distante do contato com pessoas estranhas e protegido pelo apelido que esconde seu verdadeiro nome. Assim, pode se conectar com si mesmo e ter interações simuladas que não causem mal-estar ou alguma insegurança – quando um usuário paga por uma apresentação exclusiva e pede para ver Pedro se masturbando, não há nenhuma sensação de prazer artístico e pessoal, mas apenas o cumprimento de uma obrigação profissional. Além disso, o encantamento desses momentos é evocado pela belíssima fotografia que combina as cores fortes em neon e a iluminação azulada e escurecida do quarto.
Ao descobrir que outro rapaz, Léo, está se apresentando na internet copiando seu estilo, Pedro faz questão de confrontá-lo para não perder ainda mais público. Entretanto, ao se conhecerem, os dois passam a se apresentar juntos e a desenvolver uma paixão. Com a nova relação surgida, Pedro se liberta do casulo onde havia se fechado e constrói outra ligação física e emocional: ambos possuem similaridades, como a orientação sexual e os preconceitos sofridos ao longo da vida, que permitem ao protagonista desfazer a barreira defensiva que ergueu sobre si mesmo. A longa sequência de sexo entre eles é um símbolo da intimidade construída e do salto no escuro dado por Pedro em direção a um relacionamento novo – existe outra sequência de sexo entre o protagonista e outro personagem que estabelece um contraste muito evidente por ser carregada de frieza e impessoalidade e não ter o mesmo sentimento de parceria.
Através do relacionamento entre Pedro e Léo, o isolamento do protagonista é trabalhado não apenas em função de sua timidez ou inabilidade social. A homofobia sofrida por ele é o principal aspecto que o faz se resguardar do convívio genuíno com o mundo, especialmente por ter sido perseguido por colegas de faculdade – dessa forma, seu distanciamento é, ao mesmo tempo, uma proteção contra eventuais discriminações futuras e uma insegurança quanto às consequências de uma maior exposição. A dupla de diretores constrói a tensão constante pela qual os dois passam através de ruídos incômodos ao seu redor (os sons do trânsito, da tempestade…) e de personagens envoltos em sombras sempre a observá-los, como se estivessem à espreita, prestes a fazer algo ruim.
Toda essa trajetória não seria possível sem a atuação de Shico Menegat, encarnando com grande força dramática todos os arcos do personagem, desde a inexpressividade forçada do primeiro ato, até os sofrimentos e descobertas dos atos seguintes. A evolução dramática seguida por Pedro e apresentada com grande sensibilidade pelo ator também é desenhada por uma estrutura narrativa dividida em três partes: em cada uma delas, o personagem tem uma relação emocional sendo construída e contada (seja com sua irmã Luiza, seja com Léo); sendo inclusive a terceira parte uma catarse sentimental e dramática muito orgânica aos rumos da narrativa. É com a culminância da última cena que a questão do ser humano como ser social ganha uma problematização fundamental: para uma boa relação como outro, é imprescindível uma boa relação consigo mesmo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.