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“THROUGH THE GRAVES THE WIND IS BLOWING” – Um passado horripilante [48 MICSP]

Ainda que THROUGH THE GRAVES THE WIND IS BLOWING possa ter informações de pouco conhecimento público fora da Croácia, e mesmo que o filme não se empenhe em ser muito didático nesse quesito, ele consegue ser avassalador quando atinge dados que praticamente constituem o senso comum. Seu realizador reúne sons, imagens e fatos históricos mais horripilantes que qualquer filme de terror.

Ivan Perić é filho de um pescador que se tornou detetive de polícia em Split (Croácia) para evitar trabalhar na única indústria verdadeira de seu país atualmente, o turismo. Contudo, por ironia, seu trabalho acaba recaindo em solucionar homicídios de turistas, o que se torna uma tarefa ingrata, uma vez que ninguém gosta deles. Na imprensa local, seu chefe o rotula de “uhljeb”, o insulto croata para um parasita burocrata e preguiçoso, o que lhe serve de plataforma para concorrer ao parlamento com um discurso anti-uhljeb.

(© Creative Agitation / Divulgação)

O longa dirigido por Travis Wilkerson é rico em termos de linguagem cinematográfica, dado que não se trata de um documentário meramente expositivo. Esse estilo talvez seja o que prevaleça, considerando a narração voice over, as imagens ilustrativas e a elucidação dos fatos históricos da antiga Iugoslávia (embora, como mencionado, sem esmero na didática, como ao não seguir uma ordem cronológica). Porém, é também um documentário poético em alguns momentos, transmitindo sensações como o horror e o espanto, sendo ainda participativo, pois Wilkerson entrevista Ivan e passa o seu ponto de vista sobre o tema abordado (há inclusive um senso de pessoalidade, como quando menciona a experiência com os filhos).

Nessa ótica, “Through the graves the wind is blowing” se distancia dos documentários engessados, uma vez que adota ferramentas variadas para construir as suas narrativas. Há instrumentos imagéticos e sonoros que amplificam o estímulo almejado pelo filme. É o que ocorre, por exemplo, quando o longa exibe o primeiro shopping da Iugoslávia, símbolo do sucesso do socialismo quando da sua construção, hoje em ruínas. As ruínas, por sinal, têm farta presença com os edifícios abandonados, plantas crescendo sobre o concreto, pichações, sujeiras e rachaduras, associadas ao ruído do vento sussurrando que aquilo, em um pretérito distante, era diferente. Da mesma forma, a fotografia em preto e branco também transparece a sensação de distanciamento cronológico.

Quase sempre filmado em planos estáticos, o documentário se divide graficamente entre uma vinheta, imagens significativas e as entrevistas de Ivan. A vinheta tem uma música sem grande destaque, com um fundo branco e manchas vermelhas, tradução do passado sangrento do país. Em determinado momento, contudo, os ruídos de fogos de artifício se assemelham aos de projéteis – não à toa, isso ocorre quando é relatado o genocício durante a Segunda Guerra. As imagens são bem escolhidas para exemplificar o que é narrado, havendo uma articulação excelente com a montagem. Destacam-se, primeiro, a micronarrativa em que surgem pinturas sobre a queda da Iugoslávia (rostos, cenas, lápides, lágrimas e militarismo em uma aliança tristemente poética), e, segundo, a sequência infindável de símbolos nazifascistas, embalada por uma música atordoante.

As entrevistas de Ivan Perić podem parecer menos interessantes, inclusive pelos seus moldes ortodoxos (one-shot frontal em enquadramento que varia um pouco, voz off das perguntas do diretor…), todavia há um diálogo entre essa narrativa, superficial, e a narrativa de fundo. A narrativa que tem Ivan como protagonista segue o estilo “vida e obra”, com o detetive parecendo cartunesco (óculos de sol, sobretudo e bloco de notas à mão) e não raras vezes servindo de alívio cômico (a propósito, apesar da seriedade do documentário, há momentos precisos de alívio cômico). Contudo, a história de Ivan se articula com a História da Iugoslávia ao representar a queda de uma potência xenófoba e impregnada pelo ódio de muitos. O ódio aos turistas de que fala o investigador não é coincidência ou piada, mas reflexo de um processo de revisionismo histórico sobre eventos que deveriam ser motivo de vergonha. O que mais assusta é uma inversão de valores, na qual o passado é motivo de orgulho, com símbolos extremistas expostos nos muros, ou de risos e selfies nos locais mais assombrados da Croácia.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).