“THE EDDY” – Pluralidade francesa
Entre música de alta qualidade, atuações de bom nível e dramas palpáveis, THE EDDY é uma série original Netflix que merece atenção. Talvez a gigante do streaming não se empolgue na publicidade da obra por ela não parecer tão atrativa quanto outras, mais populares (da mesma Netflix, inclusive). Será um desperdício se passar despercebida.
Com oito capítulos de aproximadamente uma hora cada, a série retrata um clube de jazz em Paris que está à beira da falência. Ao mesmo tempo em que o fechamento do estabelecimento parece iminente, as pessoas que têm alguma relação com o bar enfrentam desafiadores dramas pessoais.
Jack Thorne é quem assina os oito episódios, sendo cinco deles também roteirizados por Rebecca Lenkiewicz (dois capítulos), Rachel De-Lahay, Hamid Hlioua e Phillip Howze. Na direção, quatro nomes assumem dois episódios cada: Houda Benyamina, Damien Chazelle, Laïla Marrakchi e Alan Poul. Dentre todos esses nomes, evidentemente, é o de Chazelle o mais conhecido: o diretor (e roteirista) de “Whiplash: em busca da perfeição” e “La La Land: cantando estações” é o mais jovem cineasta a ganhar o Oscar de direção.
Embora Chazelle tenha dirigido somente os dois primeiros capítulos, aspectos que se tornaram marcantes na sua filmografia são perceptíveis na série como um todo. São eles, por exemplo, planos longos (incluindo o plano sequência do prólogo) e uso constante de câmera na mão. São ferramentas técnicas que fornecem também um tom documental à obra, que, nesse ponto de vista, demonstra unidade posto que sejam quatro os nomes da direção. Além de o mote musical ser o favorito de Chazelle – o jazz, gênero que marca suas duas obras mais famosas (as duas mencionadas) -, percebe-se uma verdadeira homenagem à música como um todo, seja no modo de filmar (o costumeiro contreplongée quando a banda está no palco, quase como uma reverência aos artistas), seja na escolha do cast (todos os integrantes da banda, exceto a vocalista, são músicos profissionais) ou mesmo nas cenas em que o processo de criação de músicas é esboçado (as de ensaio, por exemplo).
Mas não é exclusivamente de jazz que “The Eddy” é composta: dentro do gênero, há grande variação, de canções mais lentas e cantadas (como a que dá nome ao bar e à própria série) a aceleradas sem vocal (como a versão uptempo da principal); de títulos inusitados (“Bar fly”) a familiares (“Let it go” – composição que em nada se confunde com a mundialmente famosa da Disney ou com a de James Bay). Contudo, a produção não quer ficar em um só gênero e, episodicamente, expõe um pouco de rap francês e músicas árabes e africanas. Os diálogos também não se restringem a um só idioma: embora prevaleçam o francês e o inglês, há falas em árabe e polonês, por exemplo. Trata-se de uma mescla que representa bem o retrato feito por “The Eddy” para a França contemporânea: uma multiculturalidade pulsante.
É animador ver em paredes pôsteres com mensagens de respeito à diversidade (no local onde Sim vai se apresentar) e contra o bullying (na delegacia). A França de hoje é resultado de uma mistura que pode não ser pacífica, mas que é povoada por idiomas, etnias e religiões muito diferentes. O antagonismo pode repousar em pessoas ou grupos (como a criminalidade organizada oriunda do leste europeu), mas a pluralidade também enseja contratempos: a facilidade de acesso a drogas, a ineficiência policial, a ganância do sistema de ensino etc.
No caso do protagonista Elliot (André Holland), atormentado por fantasmas de seu passado, o modo como lida com os problemas do presente cria um arco narrativo rocambolesco e cansativo. Sem maturidade emocional para criar uma filha traumatizada, não consegue desenvolver um relacionamento afetivo ou administrar o clube e a banda. Sua vida está desmoronando e ele, inconscientemente, afasta as pessoas que o cercam. As principais são Julie (Amandla Stenberg) e Maja (Joanna Kulig): é apenas o afeto nutrido por ele que consegue mantê-las próximas, a despeito de tudo o que ele faz. O trio é um dos pontos altos da série, com atuações espetaculares. A eles se soma Leïla Bekhti, que tira Amira da esfera de uma coadjuvante restrita a um episódio para torná-la uma personagem humanizada e distante dos estereótipos da mulher muçulmana. É terno acompanhar a relação criada entre Julie e Maja e entre Julie e Amira, elos pouco previsíveis, mas muito naturais graças ao trabalho brilhante das atrizes.
No visual, o design de produção é impecável: a dúvida sobre a localização geográfica e temporal da produção é solucionada pela estética (pontos turísticos, automóveis, vestuário etc.), dispensando um texto expresso. Os figurinos, embora comuns, conseguem expressar adequadamente a personalidade das personagens: Julie abandona cores escuras para usar claras; Maja usa roupas escuras com folga. No caso da polonesa, Kulig, ainda que não tenha o protagonismo que teve em “Guerra Fria”, encanta com sua voz edulcorada e pela afetuosidade verossímil com que se relaciona com os demais – basta ver o que tramou para o enterro ao falar com Adam.
Os oito episódios mantêm uma linha estrutural bem homogênea, com ritmo cadenciado e subtramas conexas ao plot principal. Exceção fica com o quarto, no qual surge um novo plot, completamente alheio àquele, quase como se o capítulo habitasse um universo à parte. Não que seja problemático mostrar um arco dramático individual, até porque isso é feito com outras personagens (como Sim e Maja). O problema é que é praticamente abandonada a narrativa principal para introduzir ao público uma narrativa nova, praticamente desconhecida, protagonizada por alguém que, até então, era coadjuvante sem relevância alguma (e que, depois, volta a ser relativamente irrelevante). Estruturalmente, o quarto episódio é desafinado, sendo gritante a fuga do que a série trata como nuclear.
É difícil que “The Eddy” alcance o grande público, já que não tem um elenco estelar nem aborda um gênero musical de domínio popular (ao menos em nível mundial). Não que deva ser o objetivo da produção um alcance universal, mas os temas abordados e as músicas apresentadas merecem a maior amplitude possível. Para quem gosta de pluralidade, a série é um deleite. Afinal, não é apenas a França que é plural atualmente.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.