“TANGERINE” – Frescor e frenesi
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
Apesar da indústria nos convencer facilmente de suas máximas, não é preciso muito para se fazer cinema. As condições de produção de um determinado filme podem em muito simbolizar o resultado final, e não exclusivamente em um sentido de acabamento ou qualidade pictórica de conclusão. Mas sim em um sentido representativo, de se observar o improvável, aquilo que está à margem, a partir da precaridade, quando tudo indica que essas manifestações não deveriam sequer estar em atividade. Esse é o caso de TANGERINE, cujas lentes próximas e “amadoras” de um Iphone 5s simpatizam com duas forças da natureza que exploram os arredores alaranjados de Los Angeles.
Após passar um mês na cadeia, a garota de programa Sin-Dee escuta rumores sobre uma possível traição da parte do namorado, Chester. Quem lhe dá a notícia é a sua melhor amiga, Alexandra, uma cantora em busca de oportunidades. Juntas, elas partem em uma caótica jornada em busca de vingança, trombando com diversos representantes do universo em que habitam e desafiando os limites do absurdo.
Dirigido por Sean Baker, o filme acompanha a dupla de protagonistas com uma vivacidade em muito autorizada por seu suporte de captação. A mobilidade que o celular oferece permite um dinamismo nunca interrompido, sempre disposto a acompanhar os impulsos de energia, a trilha sonora de frenesi pop, eletrônico e derivada de outros gêneros, e as cores quentes e calorosas que revestem a ambientação. A proximidade que a lente oferece contribui para o sustento da intimidade pretendida, não sendo difícil imergir para as desventuras magnéticas travadas por Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez) e Alexandra. (Mya Taylor).
E é nesse aspecto último, que inclusive acaba englobando o próprio motorista amargurado, que o longa encontra o verdadeiro destaque. A própria natureza das imagens geradas pelo Iphone – a textura dos ruídos digitais, o menor processamento e profundidade das luzes -, aproxima a experiência do universo documental. Ainda que as situações sejam fictícias, a maneira como Sean Baker observa esse universo hipotético assume uma grande credibilidade, cúmplice dos acontecimentos que se desenrolam sem o menor ímpeto de julgá-los ou tentar intervir de qualquer forma.
Nesse sentido, por mais fechados sejam alguns dos planos adotados, existe sempre algum distanciamento, desprovido da lógica de um olhar externo investido em colonizar o comportamento daquele que acompanha. Ou, muito menos, imbuído do objetivo, enquanto autor e figura privilegiada, de dar vazão aos marginalizados, mediados por uma visão pouco orgânica.
É como se “Tangerine” ignorasse o pressuposto de ter consigo duas figuras transsexuais negras, se recusando a se articular apenas como um levantar de bandeira. É claro que essa temática, em conjunto com a questão dos profissionais do sexo – recorrente na filmografia do diretor -, constitui uma parte intrínseca à produção, mas nem por isso condena as suas personagens a ultrapassar as mesmas barreiras de autoafirmação, comumente deslocadas a uma posição subalterna e que exige uma travessia marcada por complexidades e uma espécie de fetiche pela tristeza.
O que se vê aqui, pelo contrário, é uma epopeia catártica. Por mais que o encontro entre todas as personagens, ao final, sugira uma tentativa de sintetizar todo um agrupamento social – flertando em alguma instância com um cinema de caricaturas, desconjuntado em certas passagens -, existe um profundo reconhecimento do projeto enquanto propulsor daquelas duas personagens, permitindo a propagação de novas perspectivas, impulsionando novas histórias.
Seria injusto dissociar a obra de seu teor político, de maneira alguma entendida como demérito, mas justamente efetivo pela forma como naturaliza o seu objeto de estudo. Dispensando quaisquer justificativas, o filme alinha sua essência impulsiva com o espírito de rebeldia de Sin-Dee e Alexandra, acompanhando as suas investidas, valorizando os poucos respiros, e se contentando em existir quase como uma extensão emocional das duas amigas.
Desse modo, tem-se um filme que subverte a lógica de uma representatividade mercantil – consciente da atratividade que algumas pautas tendem a assumir, esvaziando completamente o seu objetivo – para assumir um olhar muito mais orgânico, verdadeiramente interessado nas personagens que registra. Também influenciado por suas próprias condições de criação enquanto projeto independente, surge um retrato que naturaliza presenças por vezes condenadas a reviver sempre as mesmas narrativas, e que se imortaliza pela total associação, derrubando qualquer barreira, com aqueles que deseja ver e escutar.