“SUSPEITA” (1941) – Ainda bem
“Não gosto do fim do filme, mas eu tinha outro, diferente do romance; quando no final Cary Grant traz o copo de leite envenenado, Joan Fontaine estaria escrevendo uma carta à mãe: ‘Querida mamãe, estou desesperadamente apaixonada por ele, mas não quero viver. Ele vai me matar e prefiro morrer. Mas acho que a sociedade deveria ser protegida contra ele’. Então Cary Grant lhe dá o copo de leite e ela lhe diz: ‘Meu bem, será que você pode mandar esta carta para mamãe, por favor?’. Ele diz: ‘Posso’. Ela bebe o copo de leite e morre. Fusão, abertura, uma cena curta: Cary Grant chega assobiando, joga a carta pela fenda de uma caixa de correio” (fala de Hitchcock a Truffaut, disponível no livro “Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva”). O final que o mestre do suspense desejava para SUSPEITA seria melhor que o final efetivo do longa. Mesmo em 1941 havia circunstâncias externas a podar o potencial de uma obra cinematográfica.
Lina McLaidlaw é uma tímida e inexperiente moça de família rica que acaba se apaixonando pelo malandro Johnnie Aysgarth. Os dois se casam e, após a lua de mel, Lina começa a desconfiar que Johnnie possa ser um assassino – e que ela pode ser sua próxima vítima.
No livro mencionado, Truffaut define Johnnie como “desinibido, gastador e mentiroso”. O brilhante trabalho de Cary Grant no papel, quiçá um dos melhores de sua maravilhosa carreira, faz com que Johnnie pareça um bon vivant carismático o suficiente para contar com a empatia do público e, claro, de sua esposa. Nos minutos iniciais, na cena do trem, ele surge com as três características mencionadas pelo cineasta francês. Johnnie faz piadas para disfarçar o seu próprio cinismo, aproveitando-se de todos que dele se aproximam. Para ele, trabalhar é algo que não poderia estar mais distante de seu horizonte, chamando Lina de “sonhadora” quando ela diz para ele arranjar um emprego.
Nada de emprego para Johnnie, o que ele realmente quer é apostar e ganhar dinheiro, além de viajar para outros países e viver no luxo sem precisar trabalhar. Sua vida pode parecer incompatível com o casamento, o que explica a expressão de desgosto demonstrada ao assumir que estaria se apaixonando por Lina. O carisma de Grant e a ambiguidade transmitida pelo ator deixa a dúvida se Johnnie estaria de fato apaixonado por ela ou se o seu interesse seria apenas a herança que ela um dia viria a receber. De maneira excelente, Joan Fontaine (vencedora do Oscar no papel) enfatiza a fragilidade de Lina, que abraça uma cegueira inicial por se apaixonar por Johnnie. Ignorando o ocorrido no trem e o fato de seu pai chamá-lo de “rebelde”, ela se entrega por completo a ele.
No tempo em que o casal vivia, geralmente os homens podiam se relacionar com várias mulheres até cortejar aquela que viria a ser a sua esposa. O roteiro de Samson Raphaelson, Joan Harrison e Alma Reville, nesse ponto de vista, repete o questionamento do livro de Anthony Berkeley: o casamento muitas vezes unia duas pessoas que mal se conheciam. Namoros e noivados longos eram mal vistos socialmente, razão pela qual o casal acabava se conhecendo de verdade já quando unidos no matrimônio. Lina vive então três momentos: no primeiro, está perdidamente apaixonada e, de maneira bastante romântica, ignora quaisquer indícios desabonadores de Johnnie; no segundo, começa a descobrir que ele mente muito mais do que ela poderia imaginar; no terceiro, o considera um assassino e se considera uma vítima em potencial. Aliás, merece atenção o movimento com a sobrancelha esquerda que Joan Fontaine passa a adotar quando fica desconfiada.
Essa progressão é bem trabalhada por Alfred Hitchcock, que coloca a protagonista com um novelo a ser desenrolado à medida que convive com o marido. Quando surge Beaky (Nigel Bruce), ele parece ser um alívio cômico, dado seu jeito atrapalhado e engraçado (disposto até mesmo a fazer caretas). Entretanto, a personagem é uma alavanca para as desconfianças de Lina, começando externamente – leia-se, com afirmações sobre fatos que ela desconhecida e com questionamentos de cuja resposta o casal parece fugir – para então funcionar internamente ao casal – quando ela se preocupa com ele. Lina segue as pegadas de Johnnie, recebendo fortes indícios que corroboram as suas desconfianças (o interesse literário, a bebida, o jogo de formar palavras etc.). Mesmo na personalidade de Johnnie há uma transformação gradual, como se verifica quando ele é grosso com a esposa (“é assunto meu, não seu!”).
Hitchcock usa elementos visuais e sonoros para moldar uma atmosfera compatível com a narrativa. Na trilha, indicada ao Oscar, há muita música de preenchimento, ora para embalar o casal na dança, ora para enfatizar o clima da cena (no clímax, por exemplo). O cineasta se utiliza de recursos gráficos para expor avanços narrativos, como ocorre quando Lina se despede de seus pais, o que não é expresso por palavras, mas imageticamente (no seu vestuário e mesmo na expressão facial da atriz). Desse modo, a ambientação se torna cada vez mais sombria na mesma proporção em que a protagonista eleva suas desconfianças: quando ela volta para casa após tentar salvar Beaky, seus passos são vagarosos e no escuro, o que fica mais lúgubre por sua roupa escura; quando o casal está na casa de Isobel (Auriol Lee), o corte que Bertram (Gavin Gordon) faz no que parece ser uma codorna aparece em plano-detalhe, um toque de morbidez que combina com os tremores de Lina.
A cena do copo de leite é um bom exemplo da genialidade hitchcockiana. Outro diretor poderia repetir a filmagem em plongée, mostrando primeiro a sombra de Johnnie em um feixe de luz que se apaga para depois aparecer sua silhueta com a bandeja em mãos. Poucos teriam pensado em colocar uma luz dentro do copo, já que, nas palavras do cineasta, “tinha de ser extremamente luminoso. Cary Grant sobe a escada e era preciso que só se olhasse para aquele copo”.Não obstante, Hitchcock admite que teve “muitas dificuldades com esse filme”, que certamente vão além das “diferentes censuras e leis de Hollywood” que Truffaut menciona para afirmar que “purificaram uma trama policial ‘desdramatizando-a”. Após finalizar “Suspeita”, ele viajou para Nova York e, ao retornar, teve o que classificou como “uma curiosa surpresa: um produtor da RKO mandara visionar Suspeita e achara que inúmeras cenas davam a impressão de que Cary Grant era um assassino; então havia eliminado todas essas insinuações e o filme não durava mais do que cinqüenta e cinco minutos. Felizmente, o chefe da RKO percebeu que o resultado estava ridículo”, então ele pôde reconstituir o resultado que chegou ao público. Ainda bem.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.