“SURDO” – Exposição total na guerra
Quando se pensa no cinema sobre a Segunda Guerra Mundial é muito mais comum encontrar projetos que se debruçam sobre alguns aspectos específicos: por exemplo, os campos de concentração, os fronts de batalha, as características dos fascismos e os momentos paradigmáticos da luta dos Aliados contra o Eixo. Então, a realização de obras que saem dessa principal ótica chama a atenção e oferece uma perspectiva pouco conhecida que dá maior complexidade ao tema. Isso é o que acontece com a produção espanhola SURDO sobre a situação política e militar da Espanha em 1944.
Aludindo livremente ao livro “Por quem os sinos dobram” de Ernest Heminghway, o filme disponibilizado pela Netflix aborda as tentativas de derrubada da ditadura do general Francisco Franco pela resistência guerrilheira antifranquista. Os opositores planejam entrar na Espanha pela fronteira com a França até formarem um movimento numeroso contra o Estado. Nesse panorama, Anselmo é um guerrilheiro que tenta fugir do exército oficial após seu grupo ter sido dizimado, enquanto lida com os obstáculos de ter ficado surdo após uma explosão.
A narrativa proposta pelo diretor Alfonso Cortés-Cavanillas estabelece como uma possível chave de leitura a questão da vulnerabilidade na guerra. A começar pelo recorte histórico, não há garantias para nenhum dos lados envolvidos na disputa de que tenham completa segurança de que existirá ou triunfará sem sobressaltos: o governo enfrenta uma oposição que não aceita seus princípios autoritários, defende modelos políticos e sociais antagônicos e impede uma legitimação total da ideologia vigente; já a guerrilha convive diariamente com os riscos da clandestinidade e os temores de serem capturados ou assassinados pelas forças governamentais. O contraste também é importante como um retrato conjuntural da Espanha após a Guerra Civil entre 1936 e 1939 a adoção de um regime próximo dos fascismos italiano e alemão.
Insegurança semelhante é o que perpassa a condição de Anselmo. Após a explosão que eliminou sua audição, ele se encontra em uma situação adversa que o deixa absolutamente exposto pelo não tão simples fato de que não consegue se comunicar nem identificar ruídos ao redor – assim, sofre em entender as intenções de pessoas pelo caminho e os acontecimentos da política nacional. Apesar de traduzir tamanha dificuldade no roteiro, a gramática cinematográfica oscila na maneira como a surdez pode ser experimentada pelo espectador, já que não define se retira os ruídos discerníveis e apenas transmite uma frequência sonora confusa (como se o filme assumisse o ponto de vista do protagonista) ou se expõe os sons diegéticos do cenário e extradiegéticos da trilha sonora (como se apenas fosse uma perspectiva de observação externa).
Além disso, o personagem está vulnerável por uma razão histórica compartilhada com outros indivíduos: o desafio da clandestinidade e da constante perseguição pelo exército franquista. Quanto a esse aspecto, a atuação de Asier Etxeandia é importante para a demonstração do peso de uma vida isolada e sob constante tensão através do trabalho físico de profundo desgaste e de desorientação emocional. A jornada que ele atravessa apresenta um forte tom pessimista associado aos resultados reais das lutas contra a ditadura no período, prolongada por mais tempo e encerrada mediante acordos conservadores entre os setores sociais dominantes, e às desvantagens criadas pela natureza ao redor.
A partir de onde se passa a ação que a sensação de vulnerabilidade se estende ainda mais. O design de produção escolhe espaços amplos e abertos filmados em planos gerais, que são palco de perseguições a cavalo e execuções a distância; a encenação valoriza dramaticamente a natureza com passagens em cavernas, perigos de ataques de animais selvagens e submissão às intempéries do clima; e a fotografia assume um tom ensolarado proveniente dos momentos diurnos em que as ameaças também se fazem presente. Desse modo ainda, a direção escolhe não mostrar o front tradicional de batalha para virar sua atenção para cenários comuns, exemplificando como a vegetação seca, as longas estradas, os raios solares intensos se configuram como ameaçadores e inferiorizam os personagens.
Construindo uma ambientação tão arriscada seria inviável que a mesma fragilidade não cercasse os demais personagens. A morte ronda cada um deles independentemente da posição e função social: o belicismo do momento afeta o exército franquista na caça ao protagonista, já que quando menos se espera podem ser executados e quando julgam estarem condenados escapam inesperadamente; a mercenária russa Darya também envolvida na caçada, que aparece como símbolo da violência caótica que atinge a tudo e a todos e de como a guerra suga para si pessoas muito jovens; os revolucionários, que são surpreendidos por armadilhas e pela brutalidade da repressão estatal bloqueando seus objetivos; e pessoas comuns, como uma figura que abriga temporariamente Anselmo e a mulher de um dos colegas guerrilheiros, que estão rodeados pelo perigo apesar de não se posicionarem dentro do embate.
Mesmo apresentando uma chave de leitura coesa na maior parte da narrativa, “Surdo” igualmente parece afetado pela vulnerabilidade que tanto comenta. Ocasionalmente há diálogos muito expositivos para introduzir Darya e um caráter episódico na segunda metade do filme que faz o ritmo decair um pouco e as passagens da jornada de Anselmo se repetirem. Entretanto, tais sobressaltos não enfraquecem o percurso de deterioração pelo qual o protagonista passa, que comunica de forma sensível o que não se aborda tanto sobre a Segunda Guerra Mundial: houve também derrotas significativas, como a observada numa Espanha exposta pela guerra e pelos horrores do franquismo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.