Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“SUJO” – Distraindo do foco [48 MICSP]

No sul do México está Tierra Caliente, região onde mora o protagonista homônimo de SUJO. A vida do pequeno (e depois jovem) Sujo é trágica desde os primeiros instantes, como se houvesse uma força superior que o conduzisse a um sofrimento inarredável. São essas as duas ideias principais do longa, que seria mais eloquente se a sua narrativa não causasse distrações.

Com apenas quatro anos, Sujo se torna órfão do pai, um sicário assassinado pelo cartel. Criado pela tia, enquanto os anos passam, o menino parece não conseguir escapar do mesmo grupo criminoso que vitimou seu pai – e que é facilmente capaz de fazer o mesmo com ele.

(© Alpha Violet / Divulgação)

As diretoras (que também assinam o roteiro) Astrid Rondero e Fernanda Valadez têm uma preocupação muito clara em expor a vida daquelas pessoas, usando Sujo como mero exemplo, já que situação similar é vivida pelos amigos criados como irmãos, Jai (Alexis Varela) e Jeremy (Jairo Hernandez). Constata-se o império da precariedade, seja pela notória pobreza (vivem à luz de velas, as crianças comem pão seco e leite, provavelmente das cabras criadas no local), seja da maneira indireta que a ótima fotografia sugere. Os cenários são áridos, com intenso uso de tons amarelados, havendo ainda um interessante flerte com a linguagem do western (além da aridez, a filmagem em contraluz e, é claro, a opressão local, tema de diversas obras do gênero). Tanto no frio (verificado pelas jaquetas usadas em especial pelos menores) quanto no calor, o tempo é seco. Ainda que a maior parte das cenas ocorra em paisagens bucólicas, a estética é mantida nas urbanas.

O que não é mantido é o encaminhamento estilístico e mesmo de gênero que é dado à produção. No primeiro ato, surgem cenas oníricas que demonstram potencial e conseguem instigar, mas decepcionam por, na prática, não levarem a lugar algum. Nemesia (Yadira Pérez) se ocultar no escuro agrega ainda mais à fotografia, mas não contribui em nada para a narrativa e para a ideia governante. No segundo ato, o desenvolvimento de tudo o que envolve o cartel é também decepcionante, com uma vagueza que não teria relevância se o próprio filme não criasse expectativa nessa seara. Isto é, na medida em que Sujo – na sua versão adolescente, interpretado por Juan Jesús Varela – se envolve com o cartel, é natural esperar contextualizações, porém o roteiro é completamente lacunoso, a despeito da duração considerável da película.

Falando especificamente do protagonista, a versão infantil vivida por Kevin Aguilar é encantadora por transmitir a ingenuidade e a fragilidade de um órfão incapaz de compreender o significado de o pai “virar água”. A cena em que ele fica embaixo da mesa demonstra pleno domínio da mise en scène por parte das diretoras (a filmagem claustrofóbica, os ruídos intradiegéticos apavorantes para o menino e, claro, a sua reação), mas é a expressão do infante que eleva o momento a um patamar mais alto. A existência de duas versões de Sujo, entretanto, não tem a serventia meramente de elipse. Aqui repousa o problema do encaminhamento: a depender do ponto de vista, o filme se torna um coming of age, perdendo o seu rumo com cenas redundantes (a masturbação e o primeiro beijo) em detrimento da sombra do cartel (que, como mencionado, é uma parte lacunosa do roteiro).

Como resultado, a ideia governante se perde em meio a noções de menor importância e espaço maior que o necessário. Em tese, o que é medular na obra é a visão de que não existe livre-arbítrio; o debate entre este e o determinismo é inclusive verbalizado por Susan (Sandra Lorenzano). A vida de Sujo é norteada por fatores alheios: o legado deixado pelo pai, a decisão de Nemesia para evitar a sua morte, a visita de Jai e suas consequências etc. Tudo converge para ratificar o determinismo, como o simbolismo do cavalo (que, mesmo sempre fugindo, sempre é pego de volta) e a indiferença do meio (mesmo na paisagem urbana a vida do protagonista é influenciada pelo envolvimento do cartel). Nesse sentido, as cenas oníricas têm uma função simbólica que imprime um misticismo coerente com o olhar determinista. Haveria maior coerência, contudo, com um foco maior no cartel.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).