“STRANGER THINGS” [4ª TEMPORADA, 2ª PARTE] – O apogeu do algoritmo
Desde o lançamento dos primeiros capítulos, STRANGER THINGS precisa lidar com críticas a respeito de ser derivativa, dependente da nostalgia da década de 1980 e originada de cálculos matemáticos de algoritmos. As referências históricas e cinematográficas, o estilo da narrativa e a combinação de gêneros para histórias de terror vividas por jovens de cidade pequena são encarados como produtos de análise das tendências de consumo de assinantes da Netflix. Seria praticamente fazer um projeto com a cara do que os espectadores esperavam receber, nada mais, nada menos. Tal sensação pode estar mais forte ainda na segunda parte da quarta temporada da série, construída mais em torno do marketing do que da experiência sensorial proposta pelos dois últimos episódios.
O retorno da quarta temporada foi acompanhado por estratégias de publicidade que podem ser corriqueiras no universo audiovisual: fotos e cartazes variados, promessas de ampliação da escala da trama, ameaças veladas para a vida de personagens queridos pelos fãs e ações publicitárias com outras empresas (quais músicas de suas playlists do Spotify o salvariam de Vecna?). Com o passar do tempo, é possível perguntar se a divisão em duas partes se justificaria por razões artísticas ou mercadológicas (o retorno financeiro sempre tem um peso grande, mas, por vezes, os realizadores conseguem dar um sentido narrativo a essa separação). Pensando em respostas cabíveis, a intenção da Netflix de fazer o público comentar a obra por um período maior pode ser preponderante para a questão. Outros algoritmos podem decidir o questionamento: as redes sociais precisam ser mobilizadas constantemente para repercutir a produção.
A dramaturgia da primeira parte foi simplesmente suspensa, interrompida e retomada exatamente onde estava na segunda parte sem conferir nenhum dinâmica própria a ela. Os núcleos foram resgatados para continuarem sua progressão: Steve, Nancy, Robin, Dustin, Max, Lucas, Erica e Eddie se organizam para enfrentar Vecna na sua realidade original e no Mundo Invertido; Eleven ainda passa por obstáculos para sair da instalação onde é mantida por Martin Brenner com a alegação da ajudá-la a reaver seus poderes; Mike, Will e Jonathan seguem na jornada à procura de Eleven com pistas enigmáticas; e Hopper, Joyce e Murray enfrentam novos perigos para fugir da União Soviética. Especificamente o episódio oito se assume como aquele típico trecho de preparação para a conclusão de uma jornada, no qual poucos elementos podem ser definidos porque estes funcionam apenas como arrumação do tabuleiro para o clímax final. Então, pouco acontece em cada subtrama ou os conflitos são prolongados para durar mais do que o arco narrativo pedia sem idas e vindas em situação muito semelhantes.
Mesmo que as exigências de pós-produção tenham sido mais complexas para esses capítulos, o contexto extradiegético parece influenciar mais nas escolhas criativas. Algo similar vale para certos núcleos de personagens, movidos e desenvolvidos de acordo com o termômetro do público e não com rotas já pensadas pelos irmãos Duffer. Assim, os militares que perseguem Eleven suspeitando de seu envolvimento nos assassinatos em Hawkins não passam de peça de decoração sem importância. Os jogadores de basquete e demais habitantes contaminados pelo medo satânico e pela intolerância aos jogos de RPG não se tornam ameaças concretas enquanto aparecem e desaparecem na narrativa. As discussões na internet sobre a representação desatualizada de uma anticomunismo rasteiro a partir de uma prisão soviética parecem ter levado os realizadores a reforçar ainda mais a caricatura daquele país. E a marginalização significativa de Will na temporada não é devidamente resolvida ao colocar somente dois diálogos emocionantes com Mike e Jonathan que deveriam tratar da eventual homossexualidade do garoto, mas acabam sendo um recurso extremamente tímido usado para não esquecê-lo totalmente.
Outro assunto recorrente nas campanhas de divulgação da série era a escala da nova aventura, afirmando-se que todos estariam em perigo e o grau da ameaça era algo nunca antes visto. De certa forma, a grandiosidade tentada pelos criadores depende consideravelmente da duração dos episódios (o oitavo durando 1 hora e 25 minutos, já o nono, 2 horas e 19 minutos), questionável pela forma como foi trabalhada. Especialmente no último capítulo, esse problema transparece. A narrativa insiste por muito tempo na exposição e em diálogos a partir dos quais os personagens desabafam sobre questões sensíveis ou repensam suas trajetórias. Na prática, o que se observa é uma sucessão de sequências que são anticlimáticas e capazes de tornar o episódio mais inchado do que precisaria e sem o dinamismo que o clímax pediria. Um exemplo pode ser todo o arco transcorrido na União Soviética, que dura toda a temporada, afasta personagens importantes da interação com outras figuras mais interessantes, faz cair o interesse sempre que aparecia em cena (comparavelmente inferior a todos os outros núcleos) e dispensa elipses bem-vindas para a fluidez dos acontecimentos.
Sob outra perspectiva, o aumento da escala em função do alcance do novo vilão tem momentos e escolhas bem sucedidas. Vecna é um antagonista poderoso e concebido com uma identidade visual expressiva, dois aspectos que a obra consegue potencializar a partir das regras de seus ataques. Além disso, a concepção estética da criatura definida pelos efeitos visuais e pela maquiagem e a do Mundo Invertido como um universo repleto de sombras, tons vermelhos e raios pelo céu representam simbolicamente a aura de pesadelo evocada pelo roteiro. É verdade que a atuação de Jamie Campbell Bower, especialmente seu registro vocal e as manipulações feitas na pós-produção, também cumprem um papel crucial para compor a ameaça do vilão. No entanto, o que poderia ser a força principal desse desfecho é prejudicado pela estrutura inchada de uma série repleta de subtramas e episódios longos demais, deixando Vecna desaparecido por um tempo considerável.
Este inchaço também se reflete nos problemas da montagem para transitar entre os núcleos. É difícil construir e desenvolver o clímax do último episódio tendo que interligar vários arcos e personagens dispersos em muitos locais distantes. Por consequência, o núcleo de Steve, Nancy e Robin na casa abandonada fica esquecido sem aparecer para indicar o que estava ocorrendo. Da mesma forma, a montagem não consegue manter a intensidade do clímax ao deixar as cenas mais envolventes em favor de outras menos impactantes, como o confronto entre Max e Vecna ser constantemente substituído pelos acontecimentos na prisão soviética. Ainda assim, algumas construções são bem sucedidas, embora pontuais, como a sequência em que Eddie toca uma canção de rock com sua guitarra enquanto raios vermelhos cobrem o céu e monstros se aproximam voando. Mais adiante, o paralelismo entre os diferentes núcleos se sai melhor quando intercala apenas os confrontos entre Vecna e Eleven, Hopper e um monstro e Steve/Nancy/Robin e Vecna.
Na segunda parte da quarta temporada, “Stranger things” busca um final que se pretende chocante em função das mortes ou de outras consequências graves para determinados personagens e para a própria cidade de Hawkins. Em certo sentido, este desfecho tem momentos pontualmente contundentes, porém fora de uma unidade mais duradoura que fizesse o impacto ser mais completo ao longo dos novos capítulos. As referências cinematográficas nada sutis, a nostalgia dos anos 1980 mais enfraquecida, a marginalização de personagens e subtramas, a elevação da escala narrativa, a longa duração dos episódios e a falta de coesão entre tantos núcleos afetam aquela história que encantava por ser mais contida e centrada na dinâmica de um grupo de adolescentes em contato com o fantástico. Dessa vez, o grupo de jovens esteve em contato com os efeitos de um algoritmo e de operações mercadológicas que pensam no quanto a série pode ter de engajamento virtual e não no quanto a série pode proporcionar de experiências reais.
Um resultado de todos os filmes que já viu.