“STRANGER THINGS” [4ª TEMPORADA, 1ª PARTE] – O mito da grandiosidade
Continuações sofrem com uma armadilha tentadora perigosa: aumentar a escala da trama e da encenação para buscar um impacto ainda maior no público sem repetir o que havia sido feito anteriormente. STRANGER THINGS não parecia correr esse risco, apesar das oscilações de uma segunda temporada dividida entre a recuperação de seu universo e a recriação de novos elementos e do valor de uma terceira temporada novamente interessante ao imprimir uma dramaturgia coerente aos arcos dos personagens. Esta aparência durou até a primeira parte da quarta temporada, quando o desequilíbrio de excessos toma conta do roteiro, das trajetórias dos personagens, das referências e da concepção visual.
Depois do incêndio no shopping de Hawkins, os jovens protagonistas seguem suas vidas em direção à adolescência e ao Ensino Médio divididos. Eleven se mudou com a família de Will e Jonathan para a Califórnia e sofre com as dificuldades de adaptação do novo colégio. Em sua cidade natal, Mike, Dustin, Lucas e Max não parecem tão próximos como antes por vivenciarem o envelhecimento e os traumas de modos diferentes. Os dilemas pessoais de cada um precisam ser administrados enquanto um novo mal se abate sobre Hawkins desde que mortes brutais começam a ocorrer, todas ligadas ao Mundo Invertido.
Se a temporada anterior estabelecia os efeitos da passagem do tempo como eixo central dos arcos dramáticos, esta nova leva de episódios não tem uma definição clara a respeito da dramaturgia dos personagens. Uma carta escrita por Eleven para Mike insinua que as transformações inesperadas do tempo poderiam ser o tema norteador, mas logo em seguida, a narrativa sugere um interesse maior pela oposição entre ser popular e ser underground. Mais à frente, ainda se discute timidamente sobre a aparente natureza ambígua dos poderes de Eleven. Nenhum desses pontos entra em acordo e apenas conflita entre si até que a produção decide investir na construção de subtramas e estilos próprios para cada núcleo: o terror sobrenatural ao redor de Dustin, Lucas, Max, Steve, Robin e Nancy; o bullying no high school dos EUA em torno de Eleven, Mike e Will; e as relações políticas entre EUA e URSS na década de 1980.
À medida que os capítulos avançam, fica evidente o choque entre o frágil desenvolvimento dos personagens e o inchaço dos demais elementos narrativos e estéticos. A construção do roteiro busca referenciar tudo que for possível dos anos 1980, criando uma salada que salta de um ingrediente a outro sem unidade nem coesão. Algumas referências são tratadas de maneira óbvia, como a subtrama da discriminação ao diferente nas escolas estadunidenses e da ficção científica com uma agência secreta interessada em desenvolver os poderes paranormais de crianças (ambas protagonizadas por Eleven), além da paranoia satânica decorrente da incompreensão dos jogos de fantasia de RPG (atrelada aos jogadores de basquete que culpam um aluno ridicularizado e os jogos pelos assassinatos). E a alusão à Guerra Fria na subtrama envolvendo a libertação de Hopper de uma prisão russa é tratada a partir de um anticomunismo desatualizado e ultrapassado, incompatível com a atualidade em que a criação de inimigos imaginários legitimam figuras políticas autoritárias e ameaçadoras (inclusive, usando um filtro de luz melancólico e a neve constante como estereótipo e representação inferiorizada da Rússia).
É verdade que, diferentemente das temporadas anteriores, este novo conjunto de episódios carrega ainda mais na construção visual do horror. Nesse sentido, o maior mérito de Matt e Ross Duffer é ressaltar a força imagética das convenções do gênero através de planos e cenas que praticamente tornam a obra inapropriada para públicos mais jovens. A caracterização do Mundo Invertido a partir do contraste entre as trevas e os tons intensos de vermelho já torna aquele universo amedrontador em rápidas aparições e, principalmente, quando alguns personagens estão em seu interior. Já o estabelecimento do vilão Vecna cresce por conta da mitologia específica em torno dele (os relógios de pêndulo, as aranhas, o transe das vítimas e a brutalidade das mortes dentro da estética de body horror) e da sonoridade particular de sua voz capaz por si mesma de assustar o alvo. E algumas sequências exploram muito bem a visualidade do choque e da violência de poderes sobrenaturais ou paranormais, como os assassinatos cometidos pelo vilão, os ataques de criaturas do Mundo Invertido e as mortes no centro de treinamento do cientista Martin Brenner.
Mesmo tendo o mérito de se apropriar de uma imagética do horror de forma direta e sem pudores, a série volta a pecar pelo excesso quando decide explicitar suas referências. A narrativa emula as características de “A hora do pesadelo” sem originalidade ou reinvenções significativas por criar uma história na qual a violência e o vilão possuem uma dimensão onírica, inclusive expondo sua fonte de inspiração ao trazer o ator Robert Englund (intérprete de Freddy Krueger) para uma participação especial. Em determinado capítulo, quando Nancy e Robin entrevistam um homem importante para esclarecer a origem de Vecna, toda a sequência é construída de modo semelhante a “Silêncio dos Inocentes” apenas como fan service que pouco contribui para o que se conta. Além disso, a comparação entre o vilão e Michael Myers de “Halloween” precisa ser exposta didaticamente por um personagem que fala sobre um eventual bicho-papão, não confiando na capacidade dos espectadores de fazerem essa relação.
O desenvolvimento dos episódios também mostra outra faceta problemática de um escopo grande demais que sai do controle criativo dos realizadores. A estrutura narrativa é prejudicada pelo desejo de criar uma obra épica e grandiosa, na qual todos os capítulos têm mais de uma hora de duração, sem que exista coesão entre os núcleos ou fluidez na evolução da dramaturgia. Em cada subtrama e conflito existente, fica a sensação de que suas etapas e acontecimentos não chegam a pequenas resoluções que apontam para novas missões em direção à concretização de algum objetivo, mas apenas geram uma sequência de ações emparelhadas com uma relação frágil entre si ou concluídas em si mesmas – é assim, por exemplo, na sequência em que a entrada em uma “casa mal-assombrada” proporciona poucas revelações. Da mesma forma, a divisão em vários núcleos dispersa a narrativa, desviando a atenção para o pouco convidativo arco na prisão russa, desorganizando o conflito central em Hawkins e fazendo alguns arcos desaparecerem por algum tempo, como a paranoia satânica em torno do RPG.
Quando se observam os núcleos criados, é possível assimilar o quanto a quarta temporada de “Stranger things” quer abraçar várias possibilidades e não consegue muito. São muitos elementos para tentar dar conta: Dustin, Lucas, Max, Nancy, Robin e Steve tentam compreender quem é Vecna (inclusive se subdividindo em pequenos núcleos); Eleven está em uma jornada própria de recuperação dos poderes; Mike, Will e Jonathan querem ajudar Eleven; Joyce e Murray se esforçam para libertar Hopper na Rússia; os demais moradores de Hawkins se desestabilizam frente ao medo de uma imaginária ameaça satânica; referências históricas e sociais à década de 1980; a ampliação da mitologia do Mundo Invertido; e o diálogo com diversas obras do cinema de terror. Chegado o clímax da primeira parte, a saída dos irmãos Duffer é apostar em um plot twist pouco surpreendente verbalizado exaustivamente e a promessa de uma escala ainda maior para a segunda parte. Sendo assim no futuro, a série tende a se afastar do domínio autocontido das referências e da nostalgia oitentista que fez bem à primeira temporada.
Um resultado de todos os filmes que já viu.