“STRANGER THINGS” [3ª TEMPORADA] – Deixe o tempo passar
O lançamento de STRANGER THINGS pela Netflix em 2016 fortaleceu novamente a nostalgia da cultura pop em relação à década de 1980. As aventuras de um grupo de crianças em uma cidade pequena assolada por uma ameaça sobrenatural e sem a compreensão inicial dos adultos já foram a base de muitas histórias e são trabalhadas pela série dos irmãos Duffer. Na terceira temporada, as referências oitentistas foram deixadas um pouco de lado (estão presentes, mas com menor força) em favor do desenvolvimento das trajetórias de Mike, Lucas, Will, Dustin, Eleven e Maxine em direção ao fechamento do primeiro ciclo de suas vidas.
O tempo passou, as crianças cresceram e o verão de 1985 chegou a Hawkins. Durante as férias escolares, os seis jovens aproveitam as novidades do recém-inaugurado shopping Starcourt, enquanto vivenciam as experiências típicas da adolescência que colocam à prova a amizade do grupo. Quando a cidade é ameaçada por velhos e novos inimigos, eles precisarão se unir novamente para proteger sua cidade e seus habitantes contra o Mundo Invertido.
Três anos depois da primeira temporada, os principais atores não possuem mais a baixa estatura e o semblante infantil de crianças, envelhecimento esse que reflete nos seus arcos. Os primeiros namoros e brigas amorosas fazem parte da realidade de Lucas e Maxine, Mike e Eleven: o primeiro casal termina e se reconcilia sucessivamente e serve como conselheiro para os amigos (o menino dando conselhos engraçadamente inúteis e estereotipados e a menina incentivando a independência feminina); já o segundo casal está sempre muito próximo, desagradando Hopper, até que a figura paterna da menina atrapalha o relacionamento. Os demais membros do grupo sentem as consequências dessa nova realidade: Dustin volta de um acampamento, mas parece continuar distante dos colegas, já que, geograficamente, passam pouco tempo juntos; e Will se sente excluído quando a rotina de jogos de RPG é interrompida, algo indicado pelos seus vários pedidos para jogar D&D.
A influência do cotidiano nos conflitos dos personagens também está presente entre os coadjuvantes. Joyce pensa em deixar a cidade porque sofre com a perda trágica de seu namorado morto pelo Demogorgon e com os prejuízos de sua loja, devido à abertura de um shopping na cidade; Hopper enfrenta os dilemas de criar sozinho uma adolescente e aceitar seu namoro; Nancy e Jonathan tentam se encaixar no primeiro emprego trabalhando no jornal local, mas, principalmente, a jovem que busca um furo de reportagem para ser melhor tratada pelos companheiros de trabalho; Steve precisa aceitar o fato de que não conseguiu entrar para a faculdade e, temporariamente, tem como opção o trabalho em uma sorveteria. Billy seria o único sem um arco próprio até que se torna a primeira pessoa afetada pelo vilão.
Esse vilão volta a ser o Caçador de Mentes, que, aparentemente, havia sido derrotado anteriormente, mas deseja vingança contra Eleven por ter fechado o portal do Mundo Invertido. Ao invés de tentar trabalhar novamente a mitologia em torno de Eleven (como aconteceu no episódio da segunda temporada, que mostrou outros jovens com habilidades especiais), é construída uma aventura autocontida sobre a amizade e enfrentamento do sobrenatural com boas doses de suspense e articulada aos eventos do passado. Os primeiros episódios são bem conduzidos para criar o mistério acerca do retorno da criatura e dos meios para a recuperação do corpo, a partir da direção dos irmãos Duffer e de Shawn Levy, que utiliza a escuridão e o fora de campo para insinuar o perigo que se aproxima, e dos cliffhangers entre os diferentes dos capítulos. O perigo é tangível por conta também do aspecto gráfico da violência e do inimigo, que possui um nível acertado de gore nos traços asquerosos do Caçador de Mentes e nos efeitos de seu poder.
Quando o risco começa a ser anunciado, a narrativa se divide em três núcleos: um formado por Mike, Eleven, Lucas, Maxine e Will para perseguir os hospedeiros usados pela criatura; outro composto por Joyce e Hopper para investigar uma eventual reabertura do portal para o Mundo Invertido por forças misteriosas; e um último formado por Dustin, Stevie e Robin (a colega de trabalho da sorveteria) para investigar outra parte da conspiração das figuras poderosas interessadas pelo universo sobrenatural. A estrutura é beneficiada pela trama, que possibilita a condução das três linhas narrativas até sua convergência e pelos arcos próprios de cada personagem, que encontram seu desfecho emocional por conta dos rumos da aventura – todos eles devem aceitar a passagem do tempo ou deixar ir algo ou alguém, desde os hábitos da infância até as escolhas do passado que não cabem mais na vida atual.
Os núcleos e seus momentos dramáticos também são estabelecidos por fotografias correspondentes. O cotidiano comum dos personagens é preenchido por cores vibrantes e realistas, o Mundo Invertido e qualquer influência dele sobre o mundo real são iluminados pelo vermelho e por um azul escurecido e os cenários onde se materializa a conspiração são banhados por uma luz azul artificial e saturada. Além disso, os diretores constroem passagens esteticamente muito expressivas, como a comparação gráfica entre um carrossel de parque de diversões e os tentáculos do vilão, a sobreposição do som de um tiro de arma de fogo sobre a explosão de uma bexiga acertada por um dardo e o uso incomum da canção “American Pie” em uma cena violenta.
Portanto, a construção visual e temática de ‘Stranger things” está mais apurada em seu terceiro ano. Há referências oitentistas nos filmes citados (“Dia dos mortos” de Romero, “De volta para o futuro” e “Exterminador do futuro”) e na ambientação dentro da paranoia da Guerra Fria, mas a narrativa também está interessada em dar uma nova direção dramática aos personagens. Uma direção que combina com os momentos de suas vidas e com a necessidade de aceitar que a infância passou, que o passado, em parte, fica para trás, e que é preciso deixar o tempo passar.
Um resultado de todos os filmes que já viu.